29.11.04

Encontro

Não demorei muito a cruzar o espaço que separava a casa de Rapijães à moradia dos pais de Helena. Cinco minutos a pé foram suficientes para chegar aos portões que davam acesso ao pomar da avó. Eu entrara pelo caminho de cima, a correr, e nem reparara direito na eira de granito que se erguia mesmo à minha esquerda. O caminho estava adornado com todo o tipo de árvores de fruto - desde as mais comuns como macieiras, pereiras e laranjeiras, até as mais exóticas, como figueiras e diospireiros - e pequenas plantações aqui e acolá de ervas aromáticas e flores que a avó ia cuidando na medida do possível. Ao passar pelo segundo portão de acesso, a que chamavam "o portão da eira", nem pestanejei e entrei de rompante pela casa adentro, na esperança de ver a minha mãe. Foi então que vi aquele rosto desconhecido que se virou para mim, sorrindo e perguntando se eu era a filha mais velha da Maria.

- Olhem, como já está grande. Não sabes quem eu sou? Sou o teu tio Luís.

Cumprimentei o tio com alguma vergonha e só então reparei no menino que estava sentado à mesa e comia forçosamente a sopa que a mãe lhe enfiava pela goela abaixo. Era pouco mais novo que eu, um ano no máximo, mas pareceu-me logo o menino mimado da mamã. Eu nunca dera esse trabalho aos pais. Por mais que não gostasse da comida, fazia sempre o sacrifício. Entretanto, aproximei-me e cumprimentei a tia, que acabara de dar a sopa ao filho.

- Olá! Eu sou o Bruno. Sabes matar moscas?

Achei piada à pergunta. Nem conhecia o rapaz direito e ele vinha logo desafiar-me. Pusemo-nos a matar moscas em cima da mesa. Mas Bruno era desajeitado e deixava escapar quase todas. Ficava espantado com a minha capacidade em liquidar três ou quatro com uma só mãozada. Ao ver o seu espanto, exclamei:

- Sabes, de onde eu venho, as moscas são muito mais velozes ...

Acho que foi a partir daí que ele começou a admirar-me, mas com um certo receio, porque desde então nunca mais deixou de me desafiar ...

24.11.04

O Verão Quente

Luísa ficara contente por dormir em casa da prima. Embora tivessem de partilhar a mesma cama, Helena não se sentira nem um pouco apertada ou constrangida por ter de dividir o seu espaço com outra pessoa. A cama era larga e dava perfeitamente para duas crianças de oito anos. E, mal acordaram daquela primeira noite, Helena correu para mostrar à prima os rebuçados estrangeiros que a mãe escondia num frasco dentro da estante que havia na sala de estar. Os pais de Helena trabalhavam na Alemanha, num hospital, e tinham decidido que a filha mais velha ficaria com a avó, por isso a menina só tinha oportunidade de ver os pais duas vezes por ano. Quando vinha a Portugal, Celina trazia sempre muitos bolos e rebuçados alemães, mas escondia-os dos filhos, porque achava que deviam ser guardados para as visitas. Mas Helena sabia onde a mãe os escondia e durante todo aquele tempo, as duas meninas, todas as manhãs, surripiavam um doce, sem que Celina tivesse alguma vez dado conta disso.
Entretanto, ficara combinado que naquele dia todos os filhos de D. Clarinda se reuniriam na velha casa de Rapijães para reencontrarem a irmã que finalmente regressara d'além mar. Pela primeira vez em mais de dez anos, toda a família iria almoçar junta, na grande mesa da sala, como sempre tinham feito antes de cada um partir para o seu próprio destino.

19.11.04

Mensagem





A semana fora bastante proveitosa em termos de informação recolhida. Em apenas duas idas ao Arquivo Distrital, as raparigas tinham sido capazes de seguir uma linha familiar até meados do século XVII. Valera a pena terem perdido alguns dias das suas férias para acordarem mais cedo e enfrentarem o trânsito sempre complicado da estrada para o Porto. Luísa viera previamente munida de toda uma papelada que tinha conseguido reunir ao longo dos anos, na esperança de um dia completar a árvore genealógica. Esperava que a genealogia a ajudasse a desvendar os segredos que desde pequena sentira existir na velha casa de Rapijães. Talvez assim descobrisse porque ficara obcecada pela casa e porque se sentira tão triste quando soube que já nada existia dela. Estranhamente, porém, à medida que as raparigas aprofundavam os seus conhecimentos genealógicos, outros mistérios se iam adensando e, à primeira vista, pareciam não ter explicação. De repente, tinham chegado naquele que parecia ter dado início ao nome de família que ainda hoje adoptavam: Pedro Pires de Saa.

- Estás a ver? Ele não era analfabeto! E tinha muitos afilhados! - exclamou Helena.

- Gostava de ter uma fotocópia da assinatura. Será que deixam tirar fotocópias?

Luísa queria ter uma lembrança daquela assinatura tão bem feita e rematada por uma espécie de desenho no final. Estilo rococó. É isso! Uma assinatura de estilo rococó! Como era difícil encontrar assinaturas tão bem feitas em tais registos ... Naquele tempo, as pessoas ou assinavam de cruz, ou simplesmente punham só as iniciais do nome. Mas o nosso Pedro assinava por extenso. Tinha orgulho no nome. E descobrir o porquê de tal, seria apenas um dos vários mistérios com que teriam de lidar a partir daquele momento.

17.11.04

O Verão Quente

Luísa recusava-se a dormir na Torre. A Casa da Madrinha tinha-lhe despertado uma impressão tão desagradável, que só de pensar na possibilidade de dormir no quarto encostado mesmo ao lado, onde algumas horas antes as aranhas passeavam alegremente, vinha-lhe a sensação de que os fantasmas não a iriam largar durante todas as noites que ali dormisse. Não! Queria dormir na casa nova da prima Helena, que tinha quase a mesma idade que ela e com quem simpatizara logo da primeira vez que a viu.
Maria não se opusera à vontade da filha mais velha. Talvez até fosse melhor. A casa da cunhada tinha sido construída há pouco tempo e tinha todas as comodidades que uma pessoa nascida numa cidade grande esperava encontrar numa casa nova. Ali na Torre, nem quarto de banho havia em condições. Se tivessem de ir a meio da noite fazer xixi, tinham de sair da casa e percorrer alguns metros ao relento antes de chegarem ao destino. Não era uma ideia muito agradável, nem mesmo no Verão. Dona Clarinda lembrou-se até de colocar um penico debaixo da grande cama, mas Maria não estava muito disposta a utilizar tal objecto. Pronto, está decidido! A Luísa dormiria em casa da prima Helena e os outros três filhos dormiriam com ela na Torre.
Luísa ficou radiante de felicidade. Ficaria com a prima, com quem poderia brincar à vontade e ainda experimentar todos aqueles doces gostosos e desconhecidos que a tia lhe apresentara logo na primeira vez que a conheceu. Seriam umas férias inesquecíveis. Só muito mais tarde é que Luísa viria a arrepender-se da decisão que tomara naquele Verão quente de 1976.

11.11.04



À medida que os anos iam passando, a família de Isabel aumentava. Com efeito, depois de Pedro, tinham-lhe nascido mais três rapazes, todos de boa saúde. Achou por bem chamar-lhes Domingos, João e Manoel, este último em memória do filho morto prematuramente. Isabel lamentava-se por não lhe ter nascido nenhuma menina que lhe pudesse fazer companhia nas longas horas do dia em que ficava em casa sozinha a tecer. Pedro, por seu lado, não sentia falta de companheiros para as suas brincadeiras. Gostava de brincar aos soldados com os seus irmãos, principalmente o João, que desde cedo parecia demonstrar uma inclinação especial por esse tipo de brincadeiras. Também Pedro sonhava um dia em se tornar um soldado e ir para o Alentejo, como fizera o filho de Bento Gonçalves. Ou então, combater os corsários ingleses que por vezes se lembravam de assolar a costa. Frequentemente, acontecia de os soldados irem para longe e nunca mais haver notícias deles. Ou então, as notícias que recebiam vinham através dos almocreves, que diziam ter ouvido falar que fulano de tal morrera num hospital. Quando isso acontecia, o padre rezava uma missa pela alma do desaparecido. Mas naquela idade, Pedro não pensava em tragédias. Queria conhecer a aventura e ser visto com orgulho pelas gentes da aldeia. Sonhava viajar numa daquelas naus que já vira a descarregar em Vila do Conde. E até tinha um tio materno que era piloto e que andava na carreira do Brasil. Quem sabe se um dia, não faria também essa viagem. Mas enquanto esse dia não chegava, Pedro continuava a brincar, junto do fontanário, com os seus irmãos e vizinhos, aproveitando o tempo que ainda lhe restava antes de chegar o dia em que teria idade suficiente para assumir aquilo que o Destino lhe tinha reservado.

4.11.04

O Verão Quente

Não era novidade para ninguém que a velha torre não estava nas melhores condições para acolher os seus novos hóspedes, mas as saudades do antigo quarto há muito tempo não visitado fez com que Maria perdesse qualquer receio de que o telhado ou a parede pudessem cair-lhes em cima enquanto dormiam. Nem pelas crianças sentiu medo. A casa havia de aguentar pelo menos enquanto eles lá estivessem. E naquela manhã, numa cena que há muito tempo não se via em toda a casa, as mulheres abriram as janelas e puseram-se a varrer o chão. A luz solar que subitamente atravessou as portadas assustou os pequenos invasores daqueles aposentos, que logo se puseram em fuga temendo serem esmagados à vassourada. As teias de aranha também não escaparam à fúria de limpeza das mulheres, que revistaram todos os cantos à procura do bicho de oito patas. Não sobrou uma única aranha para contar a história, pelo menos elas assim pensavam. Depois de varrerem e limparem tudo, puseram lençóis novos por cima do colchão de palha. A cama tinha uma cabeceira enorme e era preciso, da parte das crianças, um grande esforço para subir lá para cima, dado que os pés do móvel eram muito altos. Ao seu lado, puseram uma cama de solteiro, de que Maria recordava ser ainda do tempo da sua infância. Era nela que dormia a criada que fazia companhia às crianças naquela torre.
Depois de ajudar a terminar a limpeza, Maria sentou-se numa conversadeira e pôde observar, enfim, o fontanário, onde uma mulher enchia o cântaro com água. E recordou-se então da Maria que executava os mesmos gestos apenas uma década antes, levando o cântaro na cabeça e equilibrando-se para não o deixar cair. Nessa altura era solteira e não conhecia outra realidade que não aquela. Tinha mudado muito de então para cá, mas ainda não se dera conta de que era o último vestígio de um modo de vida que lentamente desaparecia.