25.4.05

A Casa da Madrinha



Cortinados velhos murmuram
entre ar parado
que a morte levou a vida

D.L.Carvalho

Não me lembro em que dia é que foi, só sei é que não foi num fim de semana. Há já algum tempo que prometera a mim mesma desafiar de uma vez por todas os fantasmas e entrar naquela casa. Era de manhã e fazia sol, um dia lindo de sol, talvez por isso me sentisse com mais coragem para entrar lá dentro, certa de que jamais o tentaria num dia nublado, e nem em sonhos ousaria fazê-lo à noite. Então fui. Subi as escadinhas e entrei confiante. Cruzei o alpendre e entrei na primeira salinha, uma espécie de hall de entrada que noutras épocas tinha servido de quarto quando a casa ficara demasiado pequena para tantos filhos. Em tempos, tinha havido ali uma grande laje a separar as duas divisões, mas acabaram por retirá-la para substituir a pedra da lareira, que já se encontrava muito gasta devido aos séculos de uso. A cada passo que dava, o soalho de madeira podre rangia, mas eu sabia que era apenas por ser velho ... Ali tinha vivido a Madrinha. Estranha personagem esta de que toda a gente falava. Nunca se tinha casado, mas cuidara dos sobrinhos como se fosse a mãe deles. É verdade, eles a viam assim, muito mais do que uma simples tia solteirona. Tinha sido boa em vida, muito religiosa, como todos da família, mas sempre dissera que dali nunca tinha saído um padre. Realmente, era estranho pensar nisso. Os dois seminaristas de que ainda havia memória, não tinham chegado a concluir o curso. Um envolvera-se com uma criada e acabou por fugir de casa, o outro sofrera de uma doença degenerativa, terminando por morrer preso a uma cama, ali naquela mesma salinha. Por que será que eu tinha medo daquela casa? Será por saber que a Madrinha morreu ali também?

Alguém abrira as duas janelas da sala principal, a tal sala em que faziam reuniões quando apareciam visitas. Os mais velhos diziam que, por vezes, surgiam por lá pessoas importantes, mas eu jamais poderia confirmar essas histórias. Olhei em frente e vi as janelas abertas, as conversadeiras, e os cortinados velhos que ninguém ainda tivera coragem de retirar. No total, havia três janelas viradas para o fontanário, uma da torre, e as outras duas desta sala. Pelo caminho que existia em frente à casa, tinham percorrido peregrinos rumo a Santiago de Compostela. Sim, ao menos esta história eu podia confirmar. Vinham por ali, talvez se abastecessem de água no fontanário, e, se estivesse de noite, paravam para pernoitar, dormindo no Coberto, o quartinho do Coberto, e depois seguiam até São Pedro de Rates e de lá até Santiago de Compostela. Talvez alguns desses peregrinos fossem os tais convidados importantes que haviam estado naquela sala.

Tinha começado a soprar uma pequena brisa que fazia ondular os cortinados e, de súbito, o medo apoderou-se de mim novamente. Fechei os olhos, eu sabia que não havia nada lá dentro, e, no entanto, não conseguia estar ali mais tempo. Não suportava aquele local. Definitivamente, a Casa da Madrinha não me agradava. Havia que sair dali o mais depressa possível, mas, inexplicavelmente, não podia virar as costas àquela sala e sair de forma natural. Sentia um medo irracional de ser atacada por trás, como se alguém estivesse ali à minha espera. Dirigi-me, então, para a porta de saída, mas sempre a recuar, como um veículo em marcha atrás, tentando não fixar o olhar em nada. Era o adeus definitivo à Casa da Madrinha. Não voltaria a entrar naquele local outra vez.

22.4.05

Cântico Negro




"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou -
- Sei que não vou por aí!


Cântico Negro - José Régio

16.4.05

Mensagem


Janela com conversadeiras

“Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro”


Ode Triunfal - Álvaro de Campos


Em poucos meses de pesquisas, as improvisadas investigadoras tinham acumulado uma tal quantidade de informações que já era possível especular sobre a vida deste ou daquele antepassado, acabando por substituir por outros assuntos os eternos e sempre desagradáveis temas de conversa familiar que teimavam em vir à baila toda a vez que havia uma reunião de família, em que surgiam as inevitáveis perguntas do tipo: “Então, quando é que casam?” ou “Quando é que decidem ter filhos?”. Agora, em vez de se preocuparem com a vida sentimental da geração mais nova, o clã mais velho queria saber novidades daquele tal antepassado que tinha sido encontrado. Era com gosto que as duas pesquisadoras desbobinavam os conhecimentos adquiridos, ao mesmo tempo que podiam observar a expressão de alívio que exibiam os solteiros e descasados da família por, momentaneamente, não se sentirem objecto dos olhares de desaprovação dos mais velhos e das bocas foleiras do costume.

As duas mulheres tinham decidido voltar ao Porto para completar uma lacuna de cem anos que existia na sua genealogia. Aparentemente, estava a faltar um livro, e nem no arquivo distrital, nem na conservatória sabiam do seu paradeiro. Poderia ter-se dado o caso de o padre não o ter entregue à conservatória ou o livro ter sucumbido num incêndio ou, pura e simplesmente, ter sido deitado ao lixo! Não, não queriam acreditar, por um momento sequer, nas hipóteses mais catastróficas. Sabiam que havia casos de completo desmazelo em relação a documentos antigos encontrados em casas particulares, que eram, sem mais nem menos, queimados ou deitados fora. Mas a Igreja, nesse aspecto, sempre fora muito zelosa dos seus arquivos e se não tivesse ocorrido nenhum incêndio ou inundação, certamente o livro ainda estaria nas mãos dos padres. Graças a Deus, as tropas de Napoleão nunca tinham chegado a esta zona. Sabiam de pessoas que não podiam continuar a sua árvore genealógica para além do século XIX, em virtude dos livros terem sido completamente destruídos pelas tropas napoleónicas durante os saques ocorridos às igrejas e às casas. Milhares de pessoas impedidas de conhecerem a sua história familiar por causa de acontecimentos nefastos do passado. Mas esse, certamente, não era o caso das duas pesquisadoras. Não seria Napoleão que as iria impedir de prosseguirem na sua busca. Haviam de encontrar o livro perdido, nem que, para isso, tivessem de percorrer o país inteiro.

9.4.05

Lucretia my Reflection


Ticiano
Cupido com a Roda da Fortuna c.1520


I hear the roar of a big machine
Two worlds and in between
Hot metal and methedrine
I hear empire down
I hear empire down

I hear the roar of a big machine
Two worlds and in between
Love lost, fire at will
Dum-dum bullets and shoot to kill, I hear
Dive, bombers, and
Empire down
Empire down

I hear the sons of the city and dispossessed
Get down, get undressed
Get pretty but you and me,
We got the kingdom, we got the key
We got the empire, now as then,
We don’t doubt, we don’t take direction,
Lucretia, my reflection, dance the ghost with me

We look hard
We look through
We look hard to see for real
Such things I hear, they don’t make sense
I don’t see much evidence
I don’t feel. I don’t feel. I don’t feel

A long train held up by page on page
A hard reign held up by rage
Once a railroad
Now it’s done...

I hear the roar of a big machine
Two worlds and in between
Hot metal and methedrine
I hear empire down...

We got the empire, now as then,
We don’t doubt, we don’t take reflection,
Lucretia, my direction, dance the ghost with me...

The Sisters of Mercy

4.4.05

Totus tuus



Há muito tempo que perdi a capacidade de admirar alguém, mas do restrito grupo de pessoas por quem eu ainda sentia alguma admiração, João Paulo II fazia parte desse grupo. Sobretudo pelo difícil caminho que ele escolheu nesta vida. Sim, difícil, porque eu não compartilho daquela ideia de que o Vaticano é apenas um local de luxo e de riqueza totalmente alheio à realidade dos países. Nem vejo no simbolismo e riqueza que rodeiam o Papa um atentado contra a extrema pobreza que se vive neste planeta. Habitamos num mundo muito mais complexo do que imaginamos e se há uma estratégia que me parece lógica, essa estratégia é a do Vaticano.
Que o próximo Papa saiba encarar os desafios deste mundo decadente com força e espírito de luta, porque ele bem vai precisar. A João Paulo II nunca faltou a fé e, certamente, ele foi recompensado por isso ...