30.12.04

Ventania

Ouço o vento que assobia ao passar pela fresta da porta de entrada do escritório. Como me sinto bem ao ouvir esse som ... Num segundo, a UPS que está ligada ao computador apita uma, duas, três vezes ... Desde pequena que gosto do vento, principalmente daquele que sopra antes de uma tempestade. Imaginava que podia controlá-lo e que ele falava comigo. Sentia-me tão bem nos dias de ventania que ia de próposito à varanda de casa só para o sentir no rosto. Aquela varanda entrou muitas vezes nos meus sonhos. Quando sonhava que estava a ser perseguida, era por ali que eu fugia. Subia no alpendre e voava. Cheguei a atravessar oceanos, a fugir dos meus perseguidores. Ainda hoje, quando ando na auto-estrada (não se preocupem, eu detesto conduzir, principalmente em auto-estradas!), abro a janela do carro e deixo que o vento bata com toda a sua força no meu rosto.
O vento pode trazer destruição (e que destruição!), mas nas minhas memórias ele fará sempre parte das melhores recordações da infância.

28.12.04

Tsunami

E pensar que houve civilizações inteiras que desapareceram por causa de um tsunami ... Acho que é um pesadelo que todos nós já tivemos um dia: uma onda gigante a surgir de repente e nós a afogarmo-nos nela. Houve uma altura da minha vida em que este pesadelo era quase diário. E isto havia de acontecer precisamente na época de Natal ... Civilizações inteiras que desapareceram perante a fúria da Natureza ...
Para quem interessar, encontrei este blog de ajuda às vítimas do maremoto na Ásia:
http://tsunamihelp.blogspot.com

3.12.04

Pedro de R.


André Gonçalves - "Assunção de N.Senhora"


O tempo corria lentamente naqueles finais de século XVII. Pedro crescera em estatura, mas também em conhecimento, graças às lições que tivera de um tio padre. Aprendera a ler a Bíblia com ele, e adquirira uma caligrafia invejável, tendo em conta que não iria dedicar a sua vida aos pergaminhos. Entretanto, Isabel, sua mãe, enviuvara novamente, situação algo incomum para a época, dado que, normalmente, eram os maridos que sobreviviam às esposas, que frequentemente morriam vítimas de partos difíceis. Como pragmática e calculista que era, Isabel tratou logo de arranjar novo casamento. Não podia dar-se ao luxo de depender da benevolência do seu filho Pedro, então com quinze anos de idade, único herdeiro legítimo daquela fazenda. Durante todos aqueles anos, vivera com João Gonçalves e os filhos naquela propriedade, gerindo-a até que Pedro atingisse a maioridade. Sabia que Pedro sofrera com a morte do seu padrasto, pois João Gonçalves sempre o tratara como se fosse o seu próprio filho. Mas sabia também que mais cedo ou mais tarde, Pedro iria casar-se e então o que seria dela naquela casa? Por isso, tratou logo de arranjar casamento com Domingos Francisco, que também enviuvara recentemente. Naquele tempo, as mulheres pouco mais podiam fazer do que tentar arranjar casamentos convenientes, de forma a não ficarem tão dependentes dos filhos.
Seria a última vez que teria de recorrer a tal estratagema. Mal Pedro atingia a maioridade e a sua mãe morria. Estávamos em 1691. A partir de agora ele seria o único herdeiro de toda aquela grande propriedade.

29.11.04

Encontro

Não demorei muito a cruzar o espaço que separava a casa de Rapijães à moradia dos pais de Helena. Cinco minutos a pé foram suficientes para chegar aos portões que davam acesso ao pomar da avó. Eu entrara pelo caminho de cima, a correr, e nem reparara direito na eira de granito que se erguia mesmo à minha esquerda. O caminho estava adornado com todo o tipo de árvores de fruto - desde as mais comuns como macieiras, pereiras e laranjeiras, até as mais exóticas, como figueiras e diospireiros - e pequenas plantações aqui e acolá de ervas aromáticas e flores que a avó ia cuidando na medida do possível. Ao passar pelo segundo portão de acesso, a que chamavam "o portão da eira", nem pestanejei e entrei de rompante pela casa adentro, na esperança de ver a minha mãe. Foi então que vi aquele rosto desconhecido que se virou para mim, sorrindo e perguntando se eu era a filha mais velha da Maria.

- Olhem, como já está grande. Não sabes quem eu sou? Sou o teu tio Luís.

Cumprimentei o tio com alguma vergonha e só então reparei no menino que estava sentado à mesa e comia forçosamente a sopa que a mãe lhe enfiava pela goela abaixo. Era pouco mais novo que eu, um ano no máximo, mas pareceu-me logo o menino mimado da mamã. Eu nunca dera esse trabalho aos pais. Por mais que não gostasse da comida, fazia sempre o sacrifício. Entretanto, aproximei-me e cumprimentei a tia, que acabara de dar a sopa ao filho.

- Olá! Eu sou o Bruno. Sabes matar moscas?

Achei piada à pergunta. Nem conhecia o rapaz direito e ele vinha logo desafiar-me. Pusemo-nos a matar moscas em cima da mesa. Mas Bruno era desajeitado e deixava escapar quase todas. Ficava espantado com a minha capacidade em liquidar três ou quatro com uma só mãozada. Ao ver o seu espanto, exclamei:

- Sabes, de onde eu venho, as moscas são muito mais velozes ...

Acho que foi a partir daí que ele começou a admirar-me, mas com um certo receio, porque desde então nunca mais deixou de me desafiar ...

24.11.04

O Verão Quente

Luísa ficara contente por dormir em casa da prima. Embora tivessem de partilhar a mesma cama, Helena não se sentira nem um pouco apertada ou constrangida por ter de dividir o seu espaço com outra pessoa. A cama era larga e dava perfeitamente para duas crianças de oito anos. E, mal acordaram daquela primeira noite, Helena correu para mostrar à prima os rebuçados estrangeiros que a mãe escondia num frasco dentro da estante que havia na sala de estar. Os pais de Helena trabalhavam na Alemanha, num hospital, e tinham decidido que a filha mais velha ficaria com a avó, por isso a menina só tinha oportunidade de ver os pais duas vezes por ano. Quando vinha a Portugal, Celina trazia sempre muitos bolos e rebuçados alemães, mas escondia-os dos filhos, porque achava que deviam ser guardados para as visitas. Mas Helena sabia onde a mãe os escondia e durante todo aquele tempo, as duas meninas, todas as manhãs, surripiavam um doce, sem que Celina tivesse alguma vez dado conta disso.
Entretanto, ficara combinado que naquele dia todos os filhos de D. Clarinda se reuniriam na velha casa de Rapijães para reencontrarem a irmã que finalmente regressara d'além mar. Pela primeira vez em mais de dez anos, toda a família iria almoçar junta, na grande mesa da sala, como sempre tinham feito antes de cada um partir para o seu próprio destino.

19.11.04

Mensagem





A semana fora bastante proveitosa em termos de informação recolhida. Em apenas duas idas ao Arquivo Distrital, as raparigas tinham sido capazes de seguir uma linha familiar até meados do século XVII. Valera a pena terem perdido alguns dias das suas férias para acordarem mais cedo e enfrentarem o trânsito sempre complicado da estrada para o Porto. Luísa viera previamente munida de toda uma papelada que tinha conseguido reunir ao longo dos anos, na esperança de um dia completar a árvore genealógica. Esperava que a genealogia a ajudasse a desvendar os segredos que desde pequena sentira existir na velha casa de Rapijães. Talvez assim descobrisse porque ficara obcecada pela casa e porque se sentira tão triste quando soube que já nada existia dela. Estranhamente, porém, à medida que as raparigas aprofundavam os seus conhecimentos genealógicos, outros mistérios se iam adensando e, à primeira vista, pareciam não ter explicação. De repente, tinham chegado naquele que parecia ter dado início ao nome de família que ainda hoje adoptavam: Pedro Pires de Saa.

- Estás a ver? Ele não era analfabeto! E tinha muitos afilhados! - exclamou Helena.

- Gostava de ter uma fotocópia da assinatura. Será que deixam tirar fotocópias?

Luísa queria ter uma lembrança daquela assinatura tão bem feita e rematada por uma espécie de desenho no final. Estilo rococó. É isso! Uma assinatura de estilo rococó! Como era difícil encontrar assinaturas tão bem feitas em tais registos ... Naquele tempo, as pessoas ou assinavam de cruz, ou simplesmente punham só as iniciais do nome. Mas o nosso Pedro assinava por extenso. Tinha orgulho no nome. E descobrir o porquê de tal, seria apenas um dos vários mistérios com que teriam de lidar a partir daquele momento.

17.11.04

O Verão Quente

Luísa recusava-se a dormir na Torre. A Casa da Madrinha tinha-lhe despertado uma impressão tão desagradável, que só de pensar na possibilidade de dormir no quarto encostado mesmo ao lado, onde algumas horas antes as aranhas passeavam alegremente, vinha-lhe a sensação de que os fantasmas não a iriam largar durante todas as noites que ali dormisse. Não! Queria dormir na casa nova da prima Helena, que tinha quase a mesma idade que ela e com quem simpatizara logo da primeira vez que a viu.
Maria não se opusera à vontade da filha mais velha. Talvez até fosse melhor. A casa da cunhada tinha sido construída há pouco tempo e tinha todas as comodidades que uma pessoa nascida numa cidade grande esperava encontrar numa casa nova. Ali na Torre, nem quarto de banho havia em condições. Se tivessem de ir a meio da noite fazer xixi, tinham de sair da casa e percorrer alguns metros ao relento antes de chegarem ao destino. Não era uma ideia muito agradável, nem mesmo no Verão. Dona Clarinda lembrou-se até de colocar um penico debaixo da grande cama, mas Maria não estava muito disposta a utilizar tal objecto. Pronto, está decidido! A Luísa dormiria em casa da prima Helena e os outros três filhos dormiriam com ela na Torre.
Luísa ficou radiante de felicidade. Ficaria com a prima, com quem poderia brincar à vontade e ainda experimentar todos aqueles doces gostosos e desconhecidos que a tia lhe apresentara logo na primeira vez que a conheceu. Seriam umas férias inesquecíveis. Só muito mais tarde é que Luísa viria a arrepender-se da decisão que tomara naquele Verão quente de 1976.

11.11.04



À medida que os anos iam passando, a família de Isabel aumentava. Com efeito, depois de Pedro, tinham-lhe nascido mais três rapazes, todos de boa saúde. Achou por bem chamar-lhes Domingos, João e Manoel, este último em memória do filho morto prematuramente. Isabel lamentava-se por não lhe ter nascido nenhuma menina que lhe pudesse fazer companhia nas longas horas do dia em que ficava em casa sozinha a tecer. Pedro, por seu lado, não sentia falta de companheiros para as suas brincadeiras. Gostava de brincar aos soldados com os seus irmãos, principalmente o João, que desde cedo parecia demonstrar uma inclinação especial por esse tipo de brincadeiras. Também Pedro sonhava um dia em se tornar um soldado e ir para o Alentejo, como fizera o filho de Bento Gonçalves. Ou então, combater os corsários ingleses que por vezes se lembravam de assolar a costa. Frequentemente, acontecia de os soldados irem para longe e nunca mais haver notícias deles. Ou então, as notícias que recebiam vinham através dos almocreves, que diziam ter ouvido falar que fulano de tal morrera num hospital. Quando isso acontecia, o padre rezava uma missa pela alma do desaparecido. Mas naquela idade, Pedro não pensava em tragédias. Queria conhecer a aventura e ser visto com orgulho pelas gentes da aldeia. Sonhava viajar numa daquelas naus que já vira a descarregar em Vila do Conde. E até tinha um tio materno que era piloto e que andava na carreira do Brasil. Quem sabe se um dia, não faria também essa viagem. Mas enquanto esse dia não chegava, Pedro continuava a brincar, junto do fontanário, com os seus irmãos e vizinhos, aproveitando o tempo que ainda lhe restava antes de chegar o dia em que teria idade suficiente para assumir aquilo que o Destino lhe tinha reservado.

4.11.04

O Verão Quente

Não era novidade para ninguém que a velha torre não estava nas melhores condições para acolher os seus novos hóspedes, mas as saudades do antigo quarto há muito tempo não visitado fez com que Maria perdesse qualquer receio de que o telhado ou a parede pudessem cair-lhes em cima enquanto dormiam. Nem pelas crianças sentiu medo. A casa havia de aguentar pelo menos enquanto eles lá estivessem. E naquela manhã, numa cena que há muito tempo não se via em toda a casa, as mulheres abriram as janelas e puseram-se a varrer o chão. A luz solar que subitamente atravessou as portadas assustou os pequenos invasores daqueles aposentos, que logo se puseram em fuga temendo serem esmagados à vassourada. As teias de aranha também não escaparam à fúria de limpeza das mulheres, que revistaram todos os cantos à procura do bicho de oito patas. Não sobrou uma única aranha para contar a história, pelo menos elas assim pensavam. Depois de varrerem e limparem tudo, puseram lençóis novos por cima do colchão de palha. A cama tinha uma cabeceira enorme e era preciso, da parte das crianças, um grande esforço para subir lá para cima, dado que os pés do móvel eram muito altos. Ao seu lado, puseram uma cama de solteiro, de que Maria recordava ser ainda do tempo da sua infância. Era nela que dormia a criada que fazia companhia às crianças naquela torre.
Depois de ajudar a terminar a limpeza, Maria sentou-se numa conversadeira e pôde observar, enfim, o fontanário, onde uma mulher enchia o cântaro com água. E recordou-se então da Maria que executava os mesmos gestos apenas uma década antes, levando o cântaro na cabeça e equilibrando-se para não o deixar cair. Nessa altura era solteira e não conhecia outra realidade que não aquela. Tinha mudado muito de então para cá, mas ainda não se dera conta de que era o último vestígio de um modo de vida que lentamente desaparecia.

28.10.04

Pedro

Pedro nunca viria a sentir o peso da orfandade em criança. A rapidez com que a mãe tratara de dar outro pai aos seus dois filhos evitou que o menino alguma vez se sentisse marginalizado. Passariam muitos anos até chegar o dia em que iria questionar as suas verdadeiras origens. Durante aqueles primeiros anos de vida, pudera acompanhar o nascimento dos seus novos irmãos e a morte do irmão mais velho, Manoel, a poucos dias de ter completado 8 anos. Na altura, não dera muita importância à perda deste irmão, único elo de sangue em comum com o seu falecido pai. Tinha apenas 6 anos e ainda não compreendia muito bem a precariedade da vida e a certeza da morte. Diziam-lhe que o irmão tornara-se um anjo, por isso não devia ficar triste. Mas reparou que a mãe perdera subitamente o sorriso e que dera três mil reis em missas a serem rezadas pelo padre. Isabel não chorava, mas preocupava-se sinceramente com o bem estar da pequena alma no Outro Mundo. E prometera a si mesma dar o nome do filho morto ao próximo bebé masculino que tivesse. Não precisou de esperar muito tempo. Em Julho de 1678, Pedro via nascer mais um irmão, e este, definitivamente, seria mais afortunado do que o primeiro.

27.10.04

Nuvem Passageira




Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai

Não adianta escrever meu nome numa pedra
Pois essa pedra em pó vai se transformar
Você não vê que a vida corre contra o Tempo
Sou um castelo de areia à beira do mar

Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai


A lua cheia convida para um longo beijo
Mas o relógio te cobra o dia de amanhã
Estou perdido, sozinho e louco no meu leito
E a namorada analisada por sobre o divã

Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai


Por isso agora o que eu quero é dançar na chuva
Não quero nem saber de me fazer ou me matar
Eu vou deixar um dia a vida e a minha energia
Sou um castelo de areia à beira do mar

Hermes de Aquino

25.10.04

O Verão Quente

Naquele verão quente de 1976, quatro crianças iam finalmente conhecer os seus avós. Foram precisos vários anos até que os seus pais juntassem dinheiro suficiente para fazer uma viagem de volta ao país de onde haviam partido há mais de uma década. Para as crianças, o sonho de conhecer a avó ainda viva e somente vista por fotografias era quase tão grande como o desejo de conhecer todos os primos e primas da mesma idade, e de que só ouviam falar por meio de cartas. A avó desconhecida era já viúva quando pela primeira vez viu os seus três netos pródigos mais velhos a correrem para ela e a gritarem "Avó", como se já a conhecessem há muitos anos ...
Velha, enrugada, com a pele meio tostada pelo sol, de andar horas e horas pelos campos, e as costas curvadas de tanto olhar para o chão "a ver se topava uma moeda", D. Clarinda era a única que ainda mantinha viva a velha casa de Rapijães. Costumava fazer questão de juntar na antiga casa todos os seus filhos emigrados, altura em que os seus olhos azuis brilhavam de alegria, por ver de novo todos os filhos reunidos. Mas aquele ano de 1976 era especial. Pela primeira vez em muitos anos, veria novamente a sua filha e os netos que não conhecia. Deus tinha sido misericordioso e atendera-lhe as preces. Ainda poderia ver a filha e os netos antes de morrer.

22.10.04

Mensagem

Naquele dia quente de verão em que finalmente decidimos avançar com a nossa investigação, pudemos, pela primeira vez, comprovar que as histórias de que ouvíramos falar na nossa infância tinham o seu fundo de verdade. Afinal, para alguma coisa tinham servido aquelas conversas que mantivéramos com os idosos da família, perguntando sobre mortos e vivos, ouvindo falar dos usos, tradições e até mesmo dos mexericos, que compilámos, juntamente com as fotografias que ainda nos restavam de um ou outro parente. Tudo isto foi feito com muita pressa, pois havia a consciência de que faltava pouco tempo para que todo aquele manancial de informação viva que ainda tínhamos junto de nós se perdesse para sempre. Mas nada se comparava àquela primeira visão do nome de Pedro Pires, o nosso avô esquecido, trazido à luz do dia através das brumas dos tempos.

- Estás a ver? - disse eu meio a brincar - é o nosso avô a querer mandar uma mensagem para as suas netinhas do século XXI ...

- Não brinques com isso, que eu acredito nessas coisas!

Mas não estava a brincar. Naquele preciso momento, algo me dizia que tinha finalmente encontrado o meu objectivo e na minha cabeça começava a delinear-se algo muito maior do que inicialmente tinha imaginado.

20.10.04

Pedro de R.

O rapaz nasceu com saúde. Sua mãe voltara a casar-se imediatamente depois de ter enviuvado, ainda Pedro não tinha nascido. Na verdade, o casamento com João Gonçalves chegou a ser criticado em surdina na aldeia, dada a rapidez com que se efectuou. Diziam as más línguas que Isabel já andava de caso com o homem de Arcos, que visitava muitas vezes a família, quando o seu marido ainda era vivo. Com efeito, ainda não completara quatro meses de viuvez e Isabel já se estava a casar outra vez. E parecia que não lamentava muito a morte do primeiro esposo. Dera-lhe um funeral de pompa e circunstância, com acompanhamento de dez padres e ofício de corpo presente, além de ofertas em dinheiro e géneros à Igreja. E o padre aceitara tudo aquilo de muito bom grado: um carneiro, um cesto de pão e vinho, uma rasa de trigo, uma rasa de centeio e três rasas de milho. E como eram bem vindas essas ofertas. Compensavam os dias em que realizava ofícios e nada recebia, por se tratar de gente pobre.

O Verão Quente

No últimos tempos, a casa tinha-se degradado ainda mais. Há muitos anos que ninguém lhe fazia obras e, a cada inverno que passava, o telhado parecia que não ia resistir às intempéries. Mas naquele verão quente de 1976, a casa finalmente iria receber hóspedes. Não havia espaço para albergar cinco pessoas na moradia nova construída mesmo ao lado. A solução foi tentar acomodá-las no grande quarto virado para o fontanário. Diziam que era a "torre velha", embora ninguém soubesse explicar o sentido do nome. Mal sabia aquela gente que a casa tinha sido, em tempos, muitos séculos antes de se tornar uma ruína, uma Casa Torre. E daquele quarto se podia observar toda a propriedade até onde o olhar alcança, e avistar ao fundo, bem ao fundo, no horizonte, o traiçoeiro mar da Póvoa de Varzim.

E foi assim que, naquele distante verão, instalaram-se naquele quarto, um adulto e três crianças. Era a última vez que a casa iria ser habitada por pessoas de carne e osso antes de ser entregue definitivamente aos fantasmas ...

18.10.04

O Baptismo

Pedro nasceu num dia quente de Julho, em sua casa, naquele quarto virado para o fontanário. Seus pais trataram logo de lhe fazer o baptismo, dado que naquele tempo, a mortalidade infantil era uma realidade do dia a dia. Por isso mesmo, os pais nunca se apegavam muito aos filhos. Quanto maior a distância, menor a hipótese de virem a sofrer com a sua morte. E a morte rondava aquela vizinhança há já bastante tempo. No espaço de uma semana, Domingos da Rocha perdera os seus cinco filhos, o mais velho com quinze e o mais novo com quatro anos, vítimas de doença. Não havia tempo a perder. Comunicava-se ao padre e este marcava logo o dia do baptismo num dos três dias da semana que reservava para tais eventos. E assim, Pedro foi baptizado, com os santos óleos, numa cerimónia simples, na Igreja que um dia albergaria também o seu sepulcro. Deram-lhe o nome de Pedro Pires, em homenagem ao seu pai. O menino nascera com um estigma. Já era órfão quando nasceu ...

16.10.04

A Casa de R.

No lado oposto ao quarto, encontrava-se a cozinha. Estava bastante escura, devido a tantos séculos de fumos. Num dos lados da parede, no sítio da grande chaminé, estava o forno de cozer o pão, que de vez em quando ainda era utilizado. Aliás, de toda a casa, só a cozinha ainda era usada. O móvel onde se guardava o pão a fermentar ainda lá se encontrava. E o pão era bom e cheiroso. Só o receei de comer quando descobri que, para tapar o forno, usava-se bosta de vaca ...

8.10.04

Guarda-me uma prece

Foi bom ter começado a tocar o "Save a Prayer", do Duran Duran, na rádio. Acho que foi a primeira melodia de que realmente gostei. Aliás, eu gostava tanto da melodia que até sofria. Aquilo tocava-me a alma. Mas agora estou, como direi, estranhamente curada ...

A Casa de

Em frente à grande sala, e subindo por um degrau de pedra acedia-se ao quarto da casa. Era um quarto grande, velho, com uma janela - e as suas inevitáveis conversadeiras - que dava para o fontanário da aldeia. Poucos móveis havia. Uma cama velha e uma arca onde se guardavam roupas. O único vestígio de vida que se encontrava eram as enormes teias de aranha penduradas no tecto. Eu jamais dormiria num sítio desses. Sabe-se lá se não haveria uma tarântula? Será que há tarântulas por aqui? Não interessa, qualquer aranha que seja maior do que a cabeça de um prego já me causa arrepios ...
Contíguo ao quarto, na parte inferior do L, mas separada por uma parede, estava a "Casa da Madrinha". A "Madrinha" tinha falecido há uns vinte anos, mas eu receava entrar naquele anexo da casa. Aventurei-me uma vez a entrar pela sala e mal avistei uma máquina de costura abandonada ao fundo. Não entrei mais. Havia qualquer coisa ali que me causava ainda mais arrepios do que as aranhas do quarto de dormir ...

6.10.04

A Casa de R.

Era uma casa velha. Não! Era uma casa muito velha, já com direito a chamar-se antiga. Foi a primeira coisa que me marcou quando lá entrei pela primeira vez aos 8 anos de idade. Parecia-me uma casa de fantasmas, com a sua arquitectura em L, e as inevitáveis teias de aranha por todo o lado, que, juntamente com o soalho a ranger e a ausência de vestígios de habitação humana há largos anos, faziam-me lembrar que entrara no reino dos contos de fadas, de bruxas, castelos, príncipes e princesas encantadas. Sentia-me no papel da princesa.

Ao entrar-se pela porta principal, surgia-nos uma grande sala rectangular, com janelas de um dos lados da parede. Essas janelas não tinham "stores", mas sim grandes trancas de madeira que se fechavam por dentro, como nos castelos. Junto às janelas viam-se as conversadeiras, bancos de pedra colados à grossa parede de 40 cms. de espessura ou mais. Poucos móveis na sala. Uma grande mesa de madeira, muito velha, onde as moscas pousavam e nós tentávamos matar apenas com as mãos. Junto à mesa, algumas cadeiras de aquisição mais recente que em nada combinavam com a mesa e que demonstravam que já há muito tempo ninguém lhes passava um pano.

4.10.04

Em busca de Pedro

Eu sei, eu sei, o título faz lembrar um filme do Indiana Jones, mas é disso mesmo que se trata. É a minha busca pessoal em torno de uma pessoa que faleceu há quase 300 anos. E como se fosse um aviso do além ;) , eis senão quando o primeiro nome que surge estampado diante dos meus olhos, em letras grandes e luminosas, tal como se eu observasse um flash de néon, é o de Pedro Pires, de cuja existência eu só descobri que andava à procura naquele preciso momento em que decidi ligar a máquina de microfilmes.

E assim, começou a saga "Em busca de Pedro Pires", porque ela faz parte do meu Sonho.

No princípio

OK. Depois de devidamente testado o meu blog, eis que decido começar este meu espaço cibernético pela inevitável expressão bíblica "No princípio", pois é assim que tudo deveria começar, em vez dos enfadonhos e cada vez mais utilizados "Teste", ou "123 testando". Comecei bem este blog, mas ainda não estou familiarizada com o seu funcionamento. Aos poucos, eu chego lá. Com certeza, né?