9.3.07

Festa

Supostamente toda a gente devia estar feliz naquele dia, afinal não era sempre que uma festa luxuosa daquelas acontecia. O cenário era lindíssimo: uma quinta, uma fonte onde todos aproveitavam para tirar fotografias, um extenso relvado onde as crianças podiam brincar e um parque infantil especialmente construído para elas. Campo de futebol e uma piscina que nunca chegou a ser utilizada completavam o cenário. Mas, de todas essas coisas, o que sobressaía mesmo naquela idílica paisagem era o edifício. Majestosamente instalado no alto de uma colina, só era possível aceder-lhe através de uma escadaria, cujos degraus se afunilavam à medida que íamos subindo. Alcançar o topo das escadas era o objectivo final de todos os que se atreviam a desafiá-la e a recompensa, ao fim de tanto esforço, estava mesmo ali à mão de semear: numerosas mesas espalhadas à volta do edifício ostentavam toda a espécie de aperitivos, adornados de tal maneira que uma pessoa sentia-se intimidada só de ter que estragar aquelas esculturas tão saborosas. De facto, fora tal o trabalho empregue na elaboração dos pratos que uma pessoa não só regalava os olhos com a beleza destes, como também mimoseava o paladar, saboreando rissóis, croquetes, mariscos, salada de polvo e até lagosta, tudo acompanhado de vinhos e bebidas das mais variadas espécies, numa verdadeira antecipação do generoso repasto que nos esperava dentro do restaurante, no qual se incluía o tão esperado arroz de tamboril, que toda a gente comentava ainda antes de chegarmos ao local. Isabel também lá se encontrava. Como todas as pessoas presentes na festa, ela parecia estar feliz, embora se sentisse deslocada por saber que não fazia parte daquela família. Não sei se por indicação dos anfitriões ou se por achar que ali eu seria a única pessoa com quem poderia entabular uma conversa, a verdade é que Isabel viera sentar-se à minha mesa ... Eu esperava passar uma noite divertida, juro que esperava, afinal tinha-me preparado física e mentalmente para estar uma noite inteira a comer, rir e dançar. E não fosse o facto de habitualmente me deitar cedo, tal como fazem as galinhas, não havia no horizonte mais próximo nenhuma outra sombra que me pudesse estragar aquela noite. Mas, pronto! Isabel sentou-se ao meu lado! E mal a senti junto a mim, soou no meu espírito um alarme, como que a avisar-me de que nem tudo correria tão bem como eu havia antecipado ...O jantar, no entanto, decorreu com normalidade. Tal como eu pudera comprovar nos aperitivos, havia esmero na confecção daqueles pratos. Não só o jantar estivera óptimo, como também a música ambiente era acolhedora e por momentos esqueci-me de que Isabel era minha vizinha. A alegria no ar, aliás, era contagiante e nem quando os convidados, já depois de perfeitamente saciados e algo bêbados, se foram levantando das mesas para acompanhar a fila de pessoas que, entretanto, se formara para dançar ao ritmo de "Apita o Comboio", nem mesmo nessa altura, a sombra de Isabel me voltou a incomodar. Na verdade, a minha mente havia temporariamente se esquecido da presença daquela mulher e concentrara-se no arroz de tamboril que ainda não havia sido servido. "Será durante a madrugada", respondera-me um empregado. "De madrugada?! E isso são horas de comer?" - pensava eu surpreendida. É que eu estava mesmo à espera daquele prato. E podia sofrer a noite toda com o sono, mas nada me impediria de experimentar o famigerado arroz! Voltei a concentrar-me em Isabel. Ela ainda não se tinha levantado para dançar, algo que me pareceu estranho, dada a experiência que eu já tinha de festas anteriores. Contrariando o ambiente geral, Isabel parecia triste, o olhar distante, como se quisesse fugir dali para um local que nem ela saberia dizer onde fica. - O que fiz de mal a Deus? - balbuciou a mulher por entre goles de vinho. Percebi onde ela queria chegar. Acabara de ser expulsa de casa, do único bem que lhe deixara o pai como herança. A meia-irmã não fora capaz de conter os ímpetos gananciosos do marido que, alegando uma suposta deficiência mental da cunhada, pusera Isabel fora de casa. Agora vivia de favor em casa dos meus tios, daquela família a quem, talvez, ela gostasse de pertencer se não tivesse tido o azar de nascer enjeitada. - Gosto muito dos meus sobrinhos, eles sabem disso, mas o que me fizeram não esquecerei nunca. - continuava a mulher. Normalmente, Isabel já falava com dificuldade, mas a bebedeira em que parecia estar a mergulhar-se dificultava ainda mais a compreensão do que ela dizia. - Isabel, tu não és a única a sofrer. - respondi-lhe num tom pouco convincente. Tentava descobrir alguma maneira de a poder confortar. Mas era difícil. Naquela noite, Isabel chorava, como as águas da fonte que, lá fora, tinham embelezado o cenário das fotos dos meninos felizes.