29.8.05

Senhora nas brumas


Maiden in the Mist - Louis Icart

O fim-de-semana acordara cinzento. Do local onde estava, na cama, olhou para as frestas do "store" e percebeu que caía uma chuva miudinha lá fora. Sentia-se a humidade no ar. O quarto, silencioso, envolto na penumbra, com a porta da entrada aberta ... Foi então que olhou para o lado e viu-a. A senhora estava ali, mesmo ao lado da cama, a contemplá-la. Não ria, nem chorava, apenas contemplava-a. Estava mais jovem do que quando morrera ...

- Avó!?

Acordou sobressaltada e olhou ao redor. Lá fora, a chuva miudinha continuava a cair, o cheiro a humidade no ar, a semi-escuridão, a porta da entrada aberta ...

De repente, uma ideia veio-lhe à cabeça. A avó estava a criticá-la. Não ria, nem chorava, mas o seu olhar condenava-a. Durante muito tempo, tentou compreender aquela visão que a oprimia, até ao dia em que finalmente descobriu que, afinal, quem censurava a avó não era outra senão ...a própria neta ...

25.8.05

A lenda da Chapeleira



Não é uma lenda, é um facto real conhecido pelas pessoas com mais de sessenta anos que vivem na encosta do Monte São Félix. Mas da maneira como me contaram, aquilo mais parece uma lenda saída das brumas de tempos imemoriais, e no entanto, aconteceu praticamente ... ontem ...

"Há muitos e muitos anos, no lugar da Bagoeira, existia uma mina que brotava da encosta do monte. Por ali, havia um caminho pelo qual a Chapeleira costumava passar quando ia à casa. Ora, em determinadas alturas, a mulher ficava de tal forma transtornada ao passar pela mina que desatava a correr feito um animal, não havendo ninguém que pudesse pôr-lhe as mãos em cima. Durante dias, ninguém sabia do paradeiro da mulher, nem mesmo o pobre do marido. Depois de várias buscas efectuadas, haviam de a encontrar no cemitério de Paradela. Estes episódios acabariam por repetir-se várias vezes e nem os avisos do marido para que não passasse pela mina, nem a sua força, conseguiam impedi-la de lá ir. Havia algo que a atraia naquele lugar. E havia quem jurasse a pés juntos tê-la visto passar por um dos inúmeros buracos que existiam nos muros por onde escorriam as águas. E assim passaram-se os anos ... Da última vez em que "aquilo" aconteceu, a mulher desapareceu por vários dias, e ninguém havia de a encontrar, nem no cemitério nem em parte alguma da aldeia. Porém, após vários dias de buscas, finalmente encontraram o seu corpo ... dentro de um poço ..."


A mina, hoje em dia, está parcialmente coberta por entulho, mas o caminho ainda lá se encontra ...


Embora com vestígios de práticas ... nada recomendáveis ...

22.8.05

A Indústria dos Incêndios ou eles falam, falam, falam e não fazem nada

Acabei de ler na "SIC Online" um artigo de opinião de um jornalista a respeito dos incêndios em Portugal, artigo esse intitulado "A Indústria dos Incêndios" e devo dizer que até achei bastante interessante o seu conteúdo. Provavelmente, tudo aquilo que o jornalista refere estará muito próximo da realidade. Porém, fiquei de pé atrás quando li o seguinte parágrafo:

"Há cerca de um ano e meio, o então ministro da Agricultura quis fazer um acordo com as direcções das três televisões generalistas em Portugal, no sentido de ser evitada a transmissão de muitas imagens de incêndios durante o Verão. O argumento era que, quanto mais fogo viam no ecrã, mais os incendiários se sentiam motivados a praticar o crime...

Participei nessa reunião. Claro que o acordo não foi aceite, mas pessoalmente senti-me indignado. Como era possível que houvesse tantos cidadãos deste país a perder o rendimento da floresta - e até as habitações - e o poder político estivesse preocupado apenas com um aspecto perfeitamente marginal?"


Olhe, sr. jornalista, até pode ser um aspecto marginal, e eu bem sei que não percebo grande coisa de psicologia, mas sempre ouvi dizer que, quando uma pessoa comete suicídio, na mesma semana, outras três ou quatro cometem o mesmo acto, apenas pelo facto de estarem psicologicamente fragilizadas. Presumo que com os pirómanos aconteça algo de parecido. Mas compreendo que, hoje em dia, dado o facto de as televisões serem empresas com fins lucrativos, a concorrência entre elas obrigue a que cada vez mais se valorize a tragédia e a dor em detrimento da informação, até porque, como bem diz a elite portuguesa, o zé povinho só quer saber de Fátima, Fado e Futebol, não é verdade? E há que lhes dar doses maciças dos três efes, a bem do lucro televisivo ...

Enfim, é triste o que se lê nos jornais deste país, mas mais triste ainda é viver numa terreola da província, com um medo enorme de que mais dia menos dia, as chamas também cheguem à casa dos nossos pais e eles percam tudo aquilo que andaram a amealhar (com grande sacrifício, diga-se de passagem) ao longo da vida. Realmente, viver em Portugal é perigoso ... Depois não se admirem que alguém fique chateado, é claro que eu fico chateada ...

10.8.05

How Soon is Now?



I am the son
and the heir
of a shyness that is criminally vulgar
I am the son and heir
of nothing in particular

You shut your mouth
how can you say
I go about things the wrong way
I am human and I need to be loved
just like everybody else does

I am the son
and the heir
of a shyness that is criminally vulgar
I am the son and the heir
of nothing in particular

You shut your mouth
how can you say
I go about things the wrong way
I am human and I need to be loved
just like everybody else does

There's a club if you'd like to go
you could meet somebody who really loves you
so you go, and you stand on your own
and you leave on your own
and you go home, and you cry
and you want to die

When you say it's gonna happen "now"
well, when exactly do you mean?
see I've already waited too long
and all my hope is gone

You shut your mouth
how can you say
I go about things the wrong way
I am human and I need to be loved
just like everybody else does

The Smiths

1.8.05

O Verão Quente



Os pais de Helena tinham acabado de partir rumo à Alemanha e, mais uma vez, colocaram-me perante a hipótese de dormir na Torre. A bem dizer, eu já estava à espera que tal acontecesse, mas secretamente mantivera a esperança de que alguém me pudesse oferecer outro lugar para dormir. Quem sabe o tio Luís me arranjasse um quarto em sua casa. Ele também morava ali perto, tinha construído uma moradia nos terrenos junto ao pomar, e embora eu soubesse que, dormindo por lá, teria de aguentar os eternos desafios de Bruno, sempre era melhor do que ter de dormir naquela torre velha onde as aranhas se tinham instalado tão confortavelmente nos últimos anos. Mas ninguém me ofereceu quarto. E perante a insistência da minha mãe em eu fazer companhia aos meus irmãos na Torre, perguntei-lhe se não podia dormir junto com a avó. Acedeu sem pestanejar muito. Sabia que se insistisse comigo, eu era capaz de abrir a goela num berreiro e ela não estava para aturar cenas dessas. E foi assim que me livrei, pela segunda e última vez, de lá dormir.

Naquela manhã, a seguir à partida dos pais de Helena, acordei cedo, como habitualmente fazia, e corri até à Torre para acordar os meus irmãos. Sabia que eram os últimos dias que passávamos naquela propriedade e sentia que devíamos aproveitar ao máximo todos os momentos que ainda nos restavam. Havíamos de correr por ali fora, como fizéramos nos últimos tempos, subindo as escadas da Eira, e escondedo-nos no Coberto. Era uma imagem que aquela propriedade conhecera muitíssimo bem. Há séculos que crianças tinham subido por aquelas escadas e trepado por aquelas árvores. Por vezes, aconteciam os acidentes, como daquela vez em que outras crianças, noutros tempos, se tinham espetado nos espinhos de uma figueira-da-índia. Tinha sido há quase trinta anos. E para evitar novos acidentes, o avô decidira acabar com aquela planta maldita - a figueira do inferno - como lhe costumavam chamar. Nós não éramos muito diferentes daquelas crianças de há trinta anos. Mas talvez eu, sim. Talvez já nessa altura não fosse tão ingénua como seria de esperar para a minha idade. Já nesses tempos eu andava à procura de um tesouro escondido. E naquele local tudo era tão velho, tão antigo, que havia de existir ali um tesouro enterrado.

Há trinta anos, uma criança brincava no pomar. E ao escavar a terra, encontrou uma pequena moeda. De um lado, o esboço de umas cruzes, uma grande e outra mais pequena. Do outro lado, uma estrela de cinco pontas dentro de um círculo - o signo de Salomão. A moeda era do tempo de D. Afonso I. A criança havia de a entregar à mãe, que a mandou limpar e a pendurou num cordão ao pescoço. A história da moeda havia de ser contada de avó para neta, mas a memória encarregar-se-ia de apagá-la, até ao dia em que alguém descobriria que um dos símbolos da moeda era o mesmo que costumava desenhar inconscientemente no papel.