29.11.06

O espanta-espíritos

O despertador acabara de tocar aquela musiquinha chata que ela nunca tivera a oportunidade de escolher. Já sabia que horas eram; sete horas da manhã. E só de pensar que tinha um dia inteiro pela frente - ainda por cima com aquela tempestade que caía lá fora - desanimava-a de tal maneira que não encontrava forças para se levantar da cama, quanto mais enfrentar um dia terrível daqueles. Se pudesse, bem que ficava por ali mesmo ... Foi tomar o pequeno-almoço. A figura protectora da mãe apareceu à sua frente, como se estivesse à espera, e ela reconheceu-lhe o rosto, mas a cozinha não era a mesma que costumava utilizar todos os dias. Conversaram sobre algo de que já não conseguia lembrar-se. Certamente, nada de importante. De repente, o ar encheu-se de fumo e as duas procuraram por todo o lado a origem daquele incidente. Ah! Era a máquina de café que tinha entrado em curto-circuito. Ainda tivera tempo de ver as faíscas que saíam da tomada, ao mesmo tempo que o fumo invadia a cozinha. Com receio, desligou o interruptor e retirou a ficha da tomada. Alguém assomou à porta. Era a irmã. Devia ter estranhado a presença dela ali, mas nem sequer teve tempo para pensar nisso ... - Vem aí um furacão! - disse a irmã - Um furacão? - respondeu ela - Ah! Então era por isso que as luzes estavam a falhar e a máquina de café entrou em curto-circuito ...Num ápice, o seu instinto de sobrevivência começou a funcionar. - Esta casa tem cave? É preciso cobertores e água! Não se esqueçam de levar água! Correu pela casa à procura daqueles bens essenciais. "Se o furacão destruir a casa, será que sobrevivemos aos escombros?". Mas nem este pensamento fora suficiente para lembrar de que era necessário um estojo de primeiros-socorros. Encontrou uns frascos de doce que a mãe fizera, mas estavam acondicionados em garrafas de água! "Que ideia mais absurda a mãe ter colocado o doce ali". É verdade que não gostava de doces caseiros, mas ainda bem que os encontrara. Na pressa de se prepararem para o furacão, aquele bem que poderia ser o único alimento que teriam no abrigo.Assomou à janela e então vislumbrou ao longe a cena dantesca que se preparava para destruir a sua casa. Não era um, mas quatro furacões! "Meu Deus! Isto vai ser pior que o Katrina!".De repente, lembrou-se de alguém, que estava na estrada. "Ele vai ser apanhado!" Foi quase a gritar que lhe deu o alerta pelo telemóvel. - Vem aí um furacão! Do outro lado, respondeu-lhe uma voz estranhamente calma, que ela não conseguiu reconhecer. Vai correr tudo bem, vai correr tudo bem ... Encontrava-se de novo no quarto, acabada de sair do pesadelo e com a frase ainda a ecoar nos ouvidos. Sentia-se como se tivesse saído de uma sala de cinema, onde ela era a personagem principal de um filme de acção. Lá fora, a tempestade continuava e o espanta-espíritos balouçava freneticamente.

1.11.06

O Círculo



Visitar Evoramonte era algo que estava definitivamente fora dos meus planos. Eu já perdera a conta ao número de monumentos antigos que visitara naquelas férias e a não ser o facto de o castelo ter quase setecentos anos, nada mais havia ali que me pudesse interessar ou constituir motivo de novidade para mim. Assim pensava eu enquanto seguia pela estrada fora. Mas quando, ao longe, avistei-o no alto daquela colina, tão solitário e ao mesmo tempo tão senhor de si próprio, pensei comigo mesma que certamente não viria mal nenhum ao mundo se eu perdesse algum tempo naquelas paragens, nem que fossem apenas dois minutos para eu dar uma espreitadela. E assim fui, por descargo de consciência, sem esperar grandes surpresas daquela visita. Aliás, se havia algo que me pudesse verdadeiramente surpreender naquela tarde de verão era que o sol, de repente, resolvesse desaparecer dos céus e, com toda a pujança dos elementos, uma tempestade apocalíptica se abatesse violentamente contra aquela torre, ao ponto de não só corrermos o risco de nos tornarmos prisioneiros dela, como também de vermos correr por água abaixo todos os planos que fizéramos para aquela tarde.

Felizmente que as nuvens contrariavam os meus pensamentos, indicando não apenas que tão cedo não haveria chuva por ali, como também o juízo final ainda estava muito longe, pois o sol continuava a percorrer placidamente o seu caminho no firmamento, para a alegria dos turistas que por ali passavam e se admiravam com a imponência daquela construção. O sol, aliás, ainda brilhava alto, desafiando por todos os meios as grossas paredes de pedra da torre, cujas minúsculas janelas, numa atitude de permanente desafio, apenas deixavam entrar um fiapo de luz, como que a lembrar ao sol que lá fora mandava ele, mas dentro da torre era o reino da escuridão.




Subi então o escadório que dava acesso às várias salas do castelo. Fiquei desapontada ao verificar que as mesmas estavam vazias e, surpreendida comigo própria, perguntei-me por que razão estaria à espera de outra coisa. Tirei a câmara digital da bolsa e comecei a fotografar tudo. Colunas, paredes, escadas e janelas. De vez em quando, um ou outro turista. Era o melhor que podia fazer naquela altura. Lá fora, as nuvens passavam e o tempo também. Estava bem de se ver que não havia mais nada ali para fotografar. Fui-me embora depressa. Eu bem sabia que aquela visita não seria interessante ...

Foi então que, uma semana mais tarde, reparei no círculo. Aquilo que os meus olhos não haviam captado naquele dia, fora gravado pela câmara digital. Como um intruso que entra sem pedir licença, o círculo ficara impresso na minha fotografia. Procurei em vão encontrar uma explicação lógica para aquela presença. Sem sucesso. Efeito de luz ou defeito da câmara não explicavam aquela mancha de energia que, insistentemente, sobressaia na foto. Estava para esquecer o assunto. Não havia motivos para perder tempo com uma mancha fotográfica que, quando ampliada, mostrava graduações de textura e cor. Era óbvio que aquilo não passava de energia. Foi então que subitamente compreendi que, em todo aquele tempo em que estivera a fotografar no castelo, as salas nunca tinham estado vazias ...