28.5.05

Morta-viva


Natureza morta-viva
Salvador Dali

Nada, nem ninguém, a tinha preparado para a experiência que estava prestes a viver naquele dia. Jamais ouvira falar daquilo, não havia memória de um episódio igual na sua vida, não tomara remédios, não bebera ... Era apenas mais um dia normal de trabalho, como outro qualquer. Acordara perto das oito horas da manhã e tencionava entrar às nove no emprego. Pelas frestas da janela, podia ver que fazia sol lá fora. Motivos profissionais haviam-na obrigado a viver sozinha naquela casa, estava sozinha naquele quarto. Ainda tinha uma hora para se vestir, não estava com pressa. Deixou-se ficar ali mais um tempo.

E então saiu do quarto, passou pelos portões, atravessou a rua e pôs-se a andar na cidade, sempre a seguir aquela voz sem corpo, aquela voz que, embora nada dizendo, atraía-a como um íman. Andaram pelas ruas da cidade uma manhã inteira, carros e pessoas a passarem normalmente, eram as ruas que todos os dias ela percorria a caminho do trabalho. Começou a subir uma escadaria, eram os degraus de uma casa, a voz já estava lá em cima, no alto das escadas, e então, de repente, lembrou-se que tinha que entrar no emprego às nove horas, já estava atrasada, com certeza! Olhou para cima, a voz impelindo-a a subir, e então pensou que não, que tinha de voltar, já estava atrasada. É quando dá-se conta, horrorizada, de que não conseguia mexer-se. Estava deitada na cama daquele quarto e ao mesmo tempo a subir as escadas de uma casa. Num milésimo de segundo, teve consciência de que não conseguia acordar. Poderia ficar assim vários dias até que alguém desse pela sua falta. E, mesmo que dessem pela sua falta, e encontrassem o seu corpo, como conseguiria acordar? Tentou acalmar-se, usar da razão, e mentalmente imaginou-se a fazer o percurso inverso, em marcha atrás. Desceu as escadas, atravessou a cidade, cruzou o portão e chegou ao quarto, acordando finalmente.

Ainda mal acordara e olhou para o relógio. O episódio durara apenas um minuto, mas a forte sensação de perigo permaneceria durante muito mais tempo na sua memória.

19.5.05

Mensagem



O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado


Fernando Pessoa - "O Andaime"


O domingo amanhecera chuvoso, demonstrando má vontade contra quem quer que ousasse meter os pés na rua. Mas a decisão tinha sido tomada e nem o mau tempo seria desculpa para adiar, por mais uma vez, a ida à residência paroquial. Luísa aguardara a semana inteira por esse dia, com expectativa. Havia meses que tentava completar, em vão, aquela linha genealógica que faltava, e tudo porque o livro de baptismos não aparecia em lugar nenhum. Helena encarregara-se de indagar junto do pároco da aldeia se, porventura, tinha conhecimento de algum livro antigo na residência onde vivia. Só mesmo Helena para fazer isso. O seu curso de Direito tinha-lhe dado algum estatuto na freguesia, pelo que o padre, certamente, não se iria negar a qualquer pedido que ela lhe fizesse. E qual não foi a surpresa quando o pároco lhe disse que sim, que tinha conhecimento, não de um, mas de três! Os livros, afinal, nunca tinham saído daquela localidade e, agora que falavam nisso, foi uma coincidência elas terem aparecido precisamente naquela altura para os consultar. É que a residência paroquial tinha sofrido obras de beneficiação há bem pouco tempo e alguém encontrara aqueles livros na cave, junto a uns sacos de batata. Foi uma sorte o padre estar lá na altura. Tinha-os guardado para enviar à Diocese de Braga, mas agora que apareceram pessoas interessadas em consultá-los, teria de adiar o envio.

As duas estavam radiantes de felicidade, afinal, tudo havia sido muito mais fácil do que inicialmente tinham imaginado. Depois de tantos meses de correria, tanto tempo gasto em pesquisas, de muitos sucessos e alguns fracassos, haviam chegado, finalmente, ao livro que faltava. Era estranho pensar que estavam em posse de informações que mais ninguém possuía, nem conservatória, nem arquivo distrital. Nem mesmo os mórmons tinham tido acesso a estas informações. Como que por magia, o livro havia simplesmente desaparecido, numa cave, junto a uns sacos de batata e de repente surgia, quase duzentos anos depois, no preciso momento em que as duas mulheres procuravam por ele.

De forma simpática, o pároco indicou uma sala onde as duas podiam estudar à vontade, sem serem incomodadas. Notava-se que as obras na casa ainda não tinham terminado, faltava, pelo menos, a parte da pintura. Mas a residência estava a ficar bonita, tinham tentado manter a traça original e o interior era confortável e moderno. Entraram numa sala que dava para os fundos da casa e ficaram viradas para uma parede envidraçada de onde se podia avistar toda a aldeia.

- Foi uma boa ideia terem colocado aqui uma parede de vidro - disse Helena - Assim, aproveita-se ao máximo a luz do dia, mesmo em tempo de chuva.

O pároco entrou e colocou os três livros em cima da mesa. Nas capas, imundas dos séculos de manuseamento, podia ler-se os seguintes títulos: Baptizados - 1789/1850, Óbitos, Testamentos ...

- Fantástico - disse Luisa - Há aqui um livro de testamentos, não podíamos ter tido melhor sorte.

Sentaram-se as duas e prepararam-se para ler os livros.

- Já viste a sorte que tivemos? Acertámos em cheio nesta linha, não é verdade? - disse Helena - Ainda não me esqueci daquela primeira vez que vimos o nome de Pedro Pires, lembras-te? Eu acredito nessas coisas ...

Luísa estranhou que Helena voltasse a tocar no assunto. Mas o certo é que também ela ficara intrigada com aquela primeira visão. Quantos assentos comportaria um microfilme? Algumas centenas, por certo. E ao rebobinar a fita, o funcionário havia de a fazer parar justamente no assento de óbito de um tal Pedro Pires de Sá, de quem não faziam a menor ideia. É certo que procuravam Sás naquela freguesia, mas não Pires de Sá. Realmente, tinha sido tudo muito estranho. Até porque, como lhes faltavam muitas informações no início, tinham decidido investigar meio ao acaso. E então escolheram seguir a linha daquele nome que lhes tinha aparecido logo à primeira vez. E agora, passados todos estes meses, que as peças se encaixavam todas direitinhas umas nas outras, aquela visão inicial voltava a colocar-se nas suas mentes. Luísa questionava-se sobre o que quereria dizer toda aquela sequência de acontecimentos. Sabia que tinha fortes motivos para pensar nisso. Não era a primeira vez que lhe parecia estar a ser guiada por uma estranha mão invisível. No seu íntimo, perguntava-se se todos aqueles acontecimentos tinham sido apenas fruto de uma série de coincidências ou se tudo aquilo não faria parte de algo maior, quem sabe, de uma mensagem ...

13.5.05

The Logical Song






When I was young, it seemed that life was so wonderful,
a miracle, oh it was beautiful, magical.
And all the birds in the trees, well they'd be singing so
happily,
joyfully, playfully watching me.
But then they send me away to teach me how to be sensible,
logical, responsible, practical.
And they showed me a world where I could be so dependable,
clinical, intellectual, cynical.
There are times when all the world's asleep,
the questions run too deep
for such a simple man.
Won't you please, please tell me what we've learned
I know it sounds absurd
but please tell me who I am.
Now watch what you say or they'll be calling you a radical,
liberal, fanatical, criminal.
Won't you sign up your name, we'd like to feel you're
acceptable, respectable, presentable, a vegetable!
At night, when all the world's asleep,
the questions run so deep
for such a simple man.
Won't you please, please tell me what we've learned
I know it sounds absurd
but please tell me who I am.

Supertramp

11.5.05

4.5.05

Pedro de Rapijães


Baptismo de S. Agostinho, 1706
Bento Coelho da Silveira
Alhandra - Igreja de São João Baptista



Era de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1708 anos. Como que acompanhando os ventos de viragem trazidos pelo novo Rei que há poucos meses subira ao trono, também a vida de Pedro acabaria por sofrer uma mudança no mesmo ano em que D.João V se casava com Mariana da Áustria. Aos 36 anos, ficava viúvo de Maria de Azevedo, com seis filhos menores para criar. A viuvez masculina era frequente na época, pelo que era difícil encontrar um homem que não se tivesse casado mais do que uma vez na vida. E o facto de estar sozinho e com seis filhos para educar colocava-o perante o problema de ter de encontrar uma mulher para cuidar das crianças, duas das quais praticamente de colo. O certo é que ele não poderia encarregar-se dessa tarefa, nem confiava suficientemente numa criada para tal missão. Não, era muito melhor que as crianças tivessem uma madrasta para cuidar delas, até porque ele próprio tinha sido educado por um padrasto, a quem sempre vira como pai. Além disso, uma mulher sempre podia tratar melhor daqueles assuntos tipicamente femininos. Quem se encarregaria de vender os produtos agrícolas nas feiras? Quem trataria do vestuário e da alimentação? Quem limparia a casa? Comprar um escravo estava fora de questão, até porque esse era um bem de luxo e só as casas mais abastadas tinham fortuna para tal. A sua riqueza vinha da terra, da qual tirava o sustento da família e ainda podia amealhar algum dinheiro, depois de pagar a moleiros, jornaleiros e seareiros pelos serviços prestados, o que quase sempre acontecia em géneros. Ora, bem vistas as coisas, ele até nem era mau partido: tinha terras, cavalos, algum dinheiro e, sobretudo, era visto com respeito pelas gentes da aldeia, afinal todos o queriam para padrinho, certamente não seria difícil encontrar uma mulher que não se importasse de cuidar das seis crianças. Agora que pensava nisso, dava graças a Deus por ainda não ter experimentado o desgosto de ver morrer um filho. Quem sabe Deus não estaria a compensá-lo pelo facto de já ter nascido órfão.

Ora, Domingas Gonçalves, a filha do caseiro da igreja, ainda estava solteira e acabara de herdar uma pequena fortuna por morte dos pais. Sim, esse pormenor era importante, pois o facto é que dificilmente uma mulher podia casar-se se não tivesse dote. E morando ali tão perto, e conhecendo tão bem a família, talvez ela fosse a escolha ideal. Além do mais, com tanta terra para administrar, nunca haveria o perigo das grandes viagens para fora, como acontecia com os mareantes. Com esses não havia hipótese; as mulheres nunca podiam contar com eles. Quando menos esperavam, depois de uma longa viagem de meses ou até anos sem aparecerem por casa, lá vinham eles com um orfãozito que tinham encontrado pelo caminho ...
E é certo que, embora ainda fossem parentes, no quarto grau de afinidade, a Igreja não se iria opor a tal união. Sim, talvez fosse boa ideia propor-lhe casamento. Havia de falar-lhe e esperar pela reacção. Assim conjecturou Pedro Pires naquele distante dia, daquele distante "anno ut supra".

2.5.05

Salto Quântico


Cassiopeia

"O acto de observar define o mundo: não existe qualquer realidade profunda, vivemos num mundo fantasma onde nada existe até que se meça."

Super Interessante - Maio 2005