30.6.05

E=mc2




Há muito tempo que queria pôr este título numa das minhas mensagens, mas sempre que tentava fazê-lo, acabava por pensar: "Ainda não está na hora, espera pela altura certa", e então ia adiando. Até que chegou o dia em que encontrei a inspiração divina que faltava para esta minha ambição. É que, pelos vistos, Portugal acordou do seu sono secular e descobriu que tem um grave problema energético. E quem é que surge das brumas para fazer o papel de salvador da pátria? Ora, quem mais senão Patrick Monteiro de Barros, o "especialista em petróleo", segundo as legendas do Jornal da SIC. Se bem compreendi, Monteiro de Barros pretende convencer o governo a instalar uma central nuclear em Portugal, seguindo a lógica de que "se a maioria dos países tem, incluindo a Espanha, porque é que nós não haveríamos de ter uma?"

Pelos vistos, Monteiro de Barros não é o único nessa cruzada a favor do nuclear, sendo apoiado por vários outros empresários nesta ideia. Pronto, estou mesmo a ver: o senhor do petróleo chegou à conclusão de que depender do ouro negro já não estava a dar. Os árabes andam a dificultar a vida aos ocidentais, os chineses andam a correr atrás do petróleo como doidos, contribuindo para o aumento dos preços, e as reservas não são eternas. Vai daí, teve a brilhante ideia de, antes que a coisa desse para o torto, propor a energia nuclear como alternativa. E então, vem a SIC e faz a reportagem, tão bem feitinha, tão bem feitinha, que eu diria que aquilo era mesmo para convencer o zé povinho. Porque se bem me lembro, a energia nuclear não é essa maravilha toda que eu vi na reportagem. Por exemplo, ninguém mencionou o lixo nuclear, o tratamento dos resíduos, muito menos os custos de construção de uma tal estrutura. E depois, fiquei a pensar se a um país com a dimensão de Portugal compensa esse tipo de alternativa ...

Pronto, eu confesso que tenho aversão à palavra "nuclear". Eu sei que não entendo nada do assunto, mas dificilmente me irão convencer de que esta forma de energia é mais segura e económica do que outras. Fiquei com a impressão de que o Monteiro de Barros, talvez na iminência de ver o negócio da sua vida ir por água abaixo (salvo seja), agarrou-se à ideia do nuclear porque é a alternativa que mais convém a ele e aos "amigos", mas tenho sérias dúvidas se será a melhor para o país. Enfim, mas atendendo a que, em primeiro lugar, estão sempre os "negócios da família", como acontece frequentemente em Portugal, se calhar é mesmo para aí que caminha a opção da elite governante ...

É que, para mim, a palavra "nuclear" está ligada a um dos períodos mais negros da minha vida, ao ano de 1986, o "annus horribilis" - como diria a outra senhora - da minha modesta história. Foi o ano em que teve início a minha primeira grande depressão, em que perdi completamente a ilusão de viver. Foi um ano difícil, tão difícil que cheguei a pesar 49 kgs, medindo 1.70 mts de altura, e depois de atingir tal peso não tive sequer coragem de voltar a pesar-me novamente, com medo de ter perdido ainda mais peso. Portanto, 49 kgs. foi o meu peso oficial desse período. E há coisas que, nesses momentos difíceis, ficam inexplicavelmente associadas para o resto da vida. Uma delas foi o acidente de Chernobyl, outra foi uma música que, na altura, devia andar nos tops, mas que eu não suportava ouvi-la, porque me deixava triste (enfim, em 1986, tudo me deixava triste). A canção tornou-se de tal modo insuportável para mim que, ainda hoje, quando calha de a ouvir no rádio, eu mudo logo de estação. Eu sempre soube que o grupo que a tocava chamava-se Big Audio Dinamite, em que participava um elemento dos Clash, mas nunca me dei ao trabalho de saber o nome da canção. Ironicamente, anos depois, descobri que o tema chamava-se "E=mc2". Afinal, eu tinha mesmo motivos de sobra para não gostar da canção. Enfim, as pessoas normais poderão pensar que detestar uma música não pode justificar a aversão ao nuclear, mas para mim ... não há coincidências ...

25.6.05

Pedro


Francisco Venegas
Santa Maria Madalena - c. 1590

Domingas Gonçalves não se fez de rogada ao pedido. Já há algum tempo que pretendia casar-se e o facto de conhecer Pedro há bastantes anos dava-lhe confiança suficiente para aceitar a proposta. Na verdade, ambos moravam na mesma localidade da aldeia, vendo-se frequentemente e, por isso, se havia uma pessoa que conhecia bem os hábitos de Pedro Pires, esse alguém era Domingas Gonçalves. E assim trataram dos preparativos, fizeram correr os banhos e, em março de 1710, os noivos contraíram matrímónio na pequena igreja de São Miguel. Não faltaram convidados para a boda - gentes da localidade e os parentes de Rio Mau e da Apúlia. Como não podia deixar de ser, organizou-se uma festa, com muita comida, regada com o vinho da casa.
Cerca de um ano depois, nascia a primeira filha - Leonarda - e, no ano a seguir, Domingas. De todos os oito filhos que tinha, era fácil perceber que as raparigas estavam em vantagem.

Entretanto, tinham chegado novidades do outro lado do Atlântico. A guerra finalmente acabara e o capitão João Duarte se tinha instalado numa vila com o nome de Ribeirão do Carmo, no interior das Minas Gerais. O irmão contava que por ali circulava muita gente, todos atrás das jazidas de ouro que existiam em abundância naquela região e por causa das quais havia rebentado a sangrenta guerra. Muitas pessoas se estavam a estabelecer naquela província: aventureiros, homens de negócio, artistas e pessoas das mais variadas origens e índoles; todos acorriam àquele local na esperança de poderem encontrar a tão almejada pepita que lhes pudesse abrir as portas para a ascensão social. Era, por isso, uma zona de natural conflito, onde a presença militar impunha-se constantemente para pôr ordem naquele caos humano. Ali se ergueria a primeira cidade com características modernas no Brasil: administração burocrática, fiscalização e colecta de impostos. Até um órgão, único em toda a colónia, a pequena vila já podia gabar-se de ter. À semelhança do que viria a acontecer no oeste americano mais de cem anos depois, muita gente enriqueceria naquela região do dia para noite. João Duarte contava que tinha estado em casa do tio paterno de Pedro, João Pires - sim, porque se havia um nome que abundava na família, esse nome era João - que se estabelecera em Vila Rica, não muito longe de onde ele vivia.

Pedro ficara contente com as novidades, era bom saber que o irmão sobrevivera à guerra e que se estava a adaptar bem àquela realidade tão diferente do local onde nascera. Não havia dúvidas de que o irmão estava bem, assim como ao próprio Pedro a vida corria bem. Estranhou o facto de João ainda não se ter casado, não constava sequer que tivesse filhos. Filhos ... E ele já ia em oito! Tinha de pensar no futuro deles, principalmente as raparigas do primeiro casamento, que estavam a entrar na idade de casar. Sim, as filhas em breve iam entrar na adolescência e era preciso começar a tratar de arranjar-lhes bons pretendentes, antes que algo de mau lhes pudesse acontecer. De facto, ter filhas no século XVIII não era nada fácil, havia que estar sempre atento e não permitir que qualquer nódoa pudesse cair sobre elas. Não faltavam casos de mães solteiras que ficavam na miséria em virtude de não conseguirem arranjar casamento. De repente, sentiu-se invadir por um estranho pessimismo, tentou afastar os pensamentos negativos. Não! Certamente que Deus não permitiria que tal coisa acontecesse às suas filhas. Certamente, Ele não lhe daria esse desgosto.

23.6.05

Arrastando o seu cadáver


Bruegel
O triunfo da morte

E assim, em homenagem a esses autênticos cavaleiros do asfalto, corajosos cruzados imunes ao medo da morte, dedico esta singela canção.


ARRASTANDO O SEU CADÁVER
[Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael]

É demencial. Não há palavras que consigam dizer o horror
Vi um pobre homem agarrado ao que restava da sua mulher
Errando pela baixa
Os olhos fixos num horizonte perdido
Sem uma palavra, sem um som
Arrastando a carcaça desfigurada por entre o trânsito do fim da tarde
Passei sem conseguir dizer nada

Ninguém dizia nada. O silêncio
Acompanhava o olhar vazio. A dor

A vaguear por entre as ruínas e o trânsito do fim da tarde
As pessoas apressavam-se por causa do cair da noite
E o pobre homem seguia um destino sem rumo
Arrastando o seu cadáver
E o pobre homem
Seguia um destino sem rumo
Arrastando o seu cadáver

Ninguém dizia nada. O silêncio
Acompanhava o olhar vazio. A dor

Mão Morta

13.6.05

Canção de Embalar


Gerard Dubois
Easing



Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer

Zeca Afonso

8.6.05

O Verão Quente



As férias já estavam a chegar ao fim, mas as crianças mal tinham reparado que já se passara quase um mês de folia. Tinham sido dias de muita brincadeira e descoberta e mal nos déramos conta da passagem do tempo. É verdade, confesso que, nesses anos, se havia algo que não me preocupava minimamente era a passagem do tempo. E, embora toda a minha vida me tivesse sentido muito mais velha do que realmente era, por outro lado, procurei manter sempre bem acesas as memórias de infância, como uma espécie de remédio caseiro que podia utilizar nos momentos de crise. Sim, eu era a mais velha das crianças, não apenas por ter nascido primeiro, mas, sobretudo, porque sempre fora muito ajuizada. Desde muito cedo aprendera o significado da palavra "sacrifício". E de tão certinha que era, os rapazes haviam de inventar uma alcunha especial para mim - velha. Claro que havia de ser o meu irmão a ter uma ideia tão original. Os outros limitavam-se a repetir por arrasto.

Entretanto, os pais de Helena tinham começado os preparativos para retornarem à Alemanha. Normalmente, eles eram sempre os primeiros a ir embora e aquele ano não iria ser excepção. Só tinham de acabar de pôr em ordem as últimas burocracias pendentes, terminar as pequenas obras que faltavam na casa e prepararem-se para realizar a longa viagem de automóvel, geralmente feita de um só fôlego, quase sem descanso, rumo à Alemanha. E então, a moradia nova, até então cheia de vida, hibernava um ano inteiro, totalmente fechada, reabrindo-se apenas no verão seguinte.

Também eu já preparava as minhas malas (onde é que vou dormir quando os pais de Helena se forem embora?), arrumando algumas coisas de que não iria fazer mais uso, porém no nosso caso, não havia certeza se poderíamos voltar no ano que vem como os outros. Sabia que a minha mãe sofria com a partida. Aqueles preparativos todos, aquela tristeza no ar, faziam-na lembrar-se daquele dia em que fora despedir-se do pai que se encontrava doente na cama, "já demente", como diziam na altura, há cerca de dez anos. Tinha ido dar-lhe um beijo de despedida, mas o pai virara-se para ela e, num momento de lucidez, disse-lhe: "Sei que não te volto a ver, que te vais embora. Mas não te esqueças de Portugal". E chorou de seguida. Ninguém soube explicar como ele tivera conhecimento da viagem, ou como, na confusão da sua mente, ele compreendera tudo o que estava a acontecer. Talvez, afinal, estivessem enganados, talvez a doença de que ele padecesse não fosse demência, mas sim, lapsos de memória, aquilo que futuramente ficaria conhecido como doença de Alzheimer. E, talvez, num momento de lucidez, ele tivesse compreendido que a filha ia emigrar. O certo é que ela partiria com mágoa no coração e, anos mais tarde, quando soube da morte do pai, lá longe onde vivia, nunca mais deixou de se sentir culpada por o ter deixado. E agora que ia partir novamente, essas lembranças acorriam-lhe à mente mais uma vez. E o peso dessa mágoa fazia com que sempre que nos falava do avô, o fizesse com admiração. Que era muito alto e magro, que lia muito, que era inteligente e educado, que tinha desafiado a família para casar com a avó. Parcialmente deserdado, foi o castigo que lhe impuseram. Mesmo assim, ficara com a casa e a incumbência de cuidar da mãe na velhice.

E, sem saber,a minha mãe, ao contar essas histórias tristes, acabaria por me influenciar muito mais do que ela podia imaginar. Talvez por nunca ter conhecido o avô, ou não encontrar alguém com quem me pudesse identificar, ou talvez ainda por algum livro que li e me tivesse inconscientemente influenciado, talvez, enfim, por todas estas razões juntas e outras que não consigo descortinar, eu acabasse por idealizar o meu avô e transformá-lo numa espécie de fantasma, mais um a juntar à minha vida, mais um a fazer companhia ao de Pedro Pires, seu legítimo antepassado.