30.3.05

O Verão Quente



Se havia um local naquela propriedade que as crianças podiam chamar de seu, então esse local era seguramente o Pomar. Havia uma quantidade impressionante de árvores, quase todas muito antigas e carregadas de frutos, fazendo lembrar o Paraíso há muito tempo perdido. Na mente das crianças, as árvores tinham-se transformado em habitações imaginárias, onde cada galho representava uma parte da casa. Havíamos escolhido uma macieira como quartel general das nossas brincadeiras e cada criança tinha direito a um galho só para ela. Ai daquele que se atrevesse a usurpar o pedaço de tronco que lhe tinha sido destinado! Mesmo ao lado do pomar, estava a Eira de Granito, cuja escada de pedra testemunhava as milhares de pessoas que tinham subido aqueles degraus ao longo dos séculos e cujas pisadas o Tempo fizera questão de gravar nas covas profundas da pedra. Naquela eira, os lavradores colocavam os cereais para secar, ao mesmo tempo que guardavam o feno no Coberto. O Coberto era uma construção em granito, de dois andares, com duas grandes janelas no segundo andar, que se abriam para fora. O feno, esse, ficava no primeiro andar. O segundo andar era todo em madeira, ao qual se acedia por uma escada. Aí se guardavam as batatas, alguns produtos para tratamento da lavoura e alfaias agrícolas. Nessa altura, a escada de madeira já se encontrava muito deteriorada e eu evitava de subir por ela, pressentindo já o perigo daquela estrutura. Então, um dia, uma criança subiria por ali e cairia desamparada no chão de pedra, quando o degrau se partisse, e ficaria gravemente ferida.

Como era Verão, havia um monte de feno no Coberto, no qual costumávamos esconder-nos a fim de pregarmos sustos aos desavisados. Os mais audazes enfiavam-se mesmo completamente dentro do feno, tapando os narizes e sustendo a respiração. Nem sempre corria bem, principalmente se calhasse de alguém tossir. E dentro do Coberto, mais uma divisão, um pequeno quarto, com uma janelinha aos quadrados. E dentro do quarto, um tear de madeira, ainda com as linhas, muito antigo, aliás, tudo aqui era antigo ... Notava-se que o tear também já não era usado há muito tempo. Em vez dele, eram as aranhas que, descansadamente, teciam as grandes teias.

Alguém colocara um fio para estender a roupa na eira. Não havia melhor lugar do que aquele para secar roupas no verão. Bruno trouxera consigo um brinquedo de plástico. Era um arco e flecha que ganhara do padrinho e com o qual tentava acertar o fio de pendurar roupa que se estendia pela eira. Como não acertasse uma única vez, desafiou-me para o fazer. Os outros rapazes bem queriam ser eles a tentar a proeza, mas coube-me a mim a honra de tal disputa. Atirei com a flecha e acertei na primeira tentativa. A seguir outra, igualmente com sucesso. O rapaz olhou para mim com espanto e eu, serenamente, disse-lhe: "Sabes, na minha escola, treinamos tiro ao alvo". Assim era eu nesses tempos, sempre a inventar, sempre a imaginar um mundo completamente diferente daquele em que vivia.

24.3.05

Páscoa

21.3.05

O suicida




Cinco Andares
Quatro Cervejas
Três Pipocas
Dois Whiskeys
Uma Desilusão
Compressor de Vida.


D.L. Carvalho

Acabara de acordar do sono, ou pelo menos, assim lhe tinha parecido. Olhou em frente, aos pés da cama, e lá estava a figura a contemplá-lo. Cumprimentou-o, sem ainda pensar na estranheza de tal presença, e perguntou-lhe como era "lá em cima". A figura respondeu-lhe que era bom, mas faltava cerveja ... Tinha-se atirado da varanda do quinto andar de um edifício há menos de uma semana. Mais tarde, alguém lhe dedicaria uns versos ...

16.3.05

A Floresta



Come closer and see
See into the trees
Find the girl
If you can
Come closer and see
See into the dark
Just follow your eyes
Just follow your eyes
I hear her voice
Calling my name
The sound is deep
In the dark
I hear her voice
And start to run
Into the trees
Into the trees

Into the trees

Suddenly I stop
But I know it's too late
I'm lost in a forest
All alone
The girl was never there
It's always the same
I'm running towards nothing
Again and again and again and again

The Cure

Muito antes de compreender a letra desta música, já me tinha identificado com a sua melodia. Ainda me recordo da primeira vez que a gravei e dei a ouvir à minha irmã. Com cara de desagrado, ela virou-se para mim e disse-me: "Que canção mais mórbida"!
Desde que me conheço por gente, que sempre fui assim, meio virada para a realidade, meio virada para o surreal. Talvez isso explique o porquê de captar as subtis manipulações do mundo em que vivemos ...

12.3.05

Pedro de Rapijães


Cena da Guerra dos Emboabas num ex-voto do séc. XVIII
Autor Desconhecido

A vida de Pedro mudara completamente depois da morte de Isabel. Nos anos que se seguiram à perda da mãe, o jovem arcara com o sustento dos irmãos, tomando todas as decisões necessárias, de forma a garantir-lhes o futuro. Tal responsabilidade impediu-o de se casar mais cedo, tendo sido, por isso, o último dos irmãos a contrair matrimónio. Casaria com Maria de Azevedo, cujo acordo já havia sido formalizado pelos pais dos jovens, pouco antes da morte de Isabel. Porém alguns anos haveriam ainda de correr antes de Pedro decidir finalmente dar o passo definitivo. Com efeito, onze anos após a morte da mãe, todos os irmãos, exceptuando João, encontravam-se casados e com descendência. Pedro contava já com quatro filhos. O último tinha-lhe nascido há poucos dias. Dera-lhe o nome de Teodósio, em homenagem a D. Teodósio, 7º Duque de Bragança, cujo filho, D. Duarte, fora Senhor de Vila do Conde. A fidelidade à Casa de Bragança tinha por base um motivo muito concreto: as terras de que usufruíam pertenciam à Casa Real, a quem tinham de pagar anualmente os foros. E estes eram rigorosamente cumpridos, todos os anos, por altura do São Miguel. Não era de admirar, portanto, que a família resolvesse homenagear os seus senhorios, colocando os nomes deles nos seus próprios filhos.

Entretanto, havia já algum tempo que Pedro não recebia qualquer notícia do João. Desde o dia em que embarcara para o Brasil, tinha-lhe sido enviada apenas uma carta. Nela, o irmão relatava que havia rebentado uma guerra no interior do Brasil, na região das Minas, e ele fora destacado para a zona. O irmão contara-lhe na carta que os nativos chamavam-lhes desdenhosamente de "emboabas", pelo que a guerra acabaria por ser conhecida por esse nome. Mas nada mais lhe fora adiantado. Receava pela vida do irmão, perdido no meio de uma selva onde os perigos espreitavam a cada canto, quando não eram as doenças tropicais que os matavam. Se Deus quiser, João havia de vencer essa batalha, mas intimamente sabia que, o que quer que acontecesse, nunca mais voltaria a ver o irmão.