20.12.05

Passover



This is a crisis I knew had to come,
Destroying the balance I'd kept.
Doubting, unsettling and turning around,
Wondering what will come next.
Is this the role that you wanted to live?
I was foolish to ask for so much.
Without the protection and infancy's guard,
It all falls apart at first touch.

Watching the reel as it comes to a close,
Brutally taking its time,
People who change for no reason at all,
It's happening all of the time.
Can I go on with this train of events?
Disturbing and purging my mind,
Back out of my duties, when all's said and done,
I know that I'll lose every time.

Moving along in our God given ways,
Safety is sat by the fire,
Sanctuary from these feverish smiles,
Left with a mark on the door,
Is this the gift that I wanted to give?
Forgive and forget's what they teach,
Or pass through the deserts and wastelands once more,
And watch as they drop by the beach.

This is the crisis I knew had to come,
Destroying the balance I'd kept,
Turning around to the next set of lives,
Wondering what will come next.

Joy Division

31.10.05

Other Voices



Whisper your name in an empty room
You brush past my skin
As soft as fur
Taking hold
I taste your scent
Distant noises
Other voices
Pounding in my broken head
Commit the sin
Commit yourself
And all the other voices said
Change your mind
You're always wrong
Always wrong

Come around at christmas
I really have to see you
Smile at me slyly
Another festive compromise
But I live with desertion
And eight million people
Distant noises
Of other voices
Pulsing in my swinging arms
Caress the sound
So many dead
And all the other voices sing
Change your mind
You're always wrong

The Cure

18.10.05

The Pan Within


........................................................... Desenho de "Mar Submerso"

Come with me
On a journey beneath the skin
Come with me
On a journey under the skin
We will look together
For the pan within

Close your eyes
Breathe slow we’ll begin
Close your eyes
Breathe slow and we will begin
To look together
For the pan within

Swing your hips
Loose your head, and let it spin
Swing your hips
Loose you head, and let it spin
And we will look together
For the pan within

Close your eyes
Breathe slow and we will begin
Close your eyes
Breathe slow and we will begin
To look together
For the pan within

Put your face in my window
Breathe a night full of treasures
The wind is delicious
Sweet and wild with the promise of pleasure
The stars are alive
And nights like these
Were born to be
Sanctified by you and me
Lovers, thieves, fools and pretenders
And all we gotta do is surrender

Come with me
On a journey under the skin
Come with me
On a journey under the skin
And we will look together
For the pan within
When to be with you
Is not a sin
When to be with you, oh just to be with you
Is not a sin
We will look together
For the pan within

Waterboys

11.10.05

O Cativo



I
Os mouros me cativaram
Entre a paz e a guerra
Me levaram a vender,
P'rá Argelim, que é sua terra

II
Não houve perro nem perra
Que o comprar me quisera
Só o perro de um mouro
A mim só comprar havera.

III
De noite a moer esparto
De dia a pisar canela
Punha-me um freio na boca
Para eu não comer dela

IV
Mas parabéns à ventura
Da filha ser minha amiga
Quando o perro ia à caça
Comigo se divertia.

V
Dava-me a comer pão branco
Do que o perro comia,
Deitava-me em catre de ouro
Junto comigo dormia

VI
Um dia pela manhã
Mil branquinhas me trouxera:
- Toma lá meu bom cristiano
Resgate para tu terra.

VII
Vem-te cá, ó meu bom turco
Vem-me agora aqui ouvir
Toma lá este dinheiro
Para me eu redimir

VIII
- Vem-te cá Angela, filha;
Dize-me aqui a verdade,
Se o bom do cristiano,
a ti deve a liberdade?

IX
- Deixa-o ir, o bom cristiano
Que ele a mim não deve nada
Se não for a flor de mi boca
Que a dou por bem empregada.

Brigada Victor Jara

4.10.05

O Verão Quente


Aquele era o último fim-de-semana. A viagem de regresso a casa estava marcada para a terça-feira seguinte. Os últimos dias foram, por isso, um reboliço total, a andar de feira em feira para fazer as compras de última hora e a empreender as visitas finais, de cortesia e não só, aos familiares e amigos. Eu, como sempre, acompanhava as mulheres e ajudava-as nas suas ocupações. Sempre me sentira suficientemente adulta para estar junto das mulheres mais velhas, ainda que tivesse apenas oito anos. E a minha mãe reforçava esse sentimento, fazendo-me sentir que ela confiava em mim.

Naquela manhã, a mãe de Bruno também viera acompanhar as restantes mulheres. Oferecera-se para ajudar a minha mãe nas compras e deixara o filho doente em casa por algumas horas. Não que houvesse motivos para estar muito preocupada. Na verdade, o rapaz andava sempre doente, pois não se alimentava nada bem, e, como tal, estranho mesmo era ele não estar doente. Na família, comentava-se, em surdina, o facto de ela ter escolhido um nome tão estranho para o filho. Que raio de ideia de chamar Bruno ao rapaz! Porque não chamar João, José ou Manuel, como tinha sido tradicional até então? Mas Bruno? Já não bastava virem com aquelas manias do estrangeiro, e agora até nomes estranhos punham aos filhos! E, ainda por cima, a mulher veio com aquela história de que na Alemanha não deixavam registar nomes portugueses, então pôs Bruno, tudo por culpa das autoridades alemãs! É claro que ninguém acreditava nessa versão dos factos. A verdade é que a mulher gostara do nome e, para não entrar em conflito com os sogros, inventou semelhante desculpa.

À tarde, depois do almoço, fui visitar o rapaz adoentado. Lá estava ele, estendido na cama, com um ar muito sofredor, mas, não sei bem por que razão, por mais que ele fizesse caretas, eu não acreditava muito naquilo. Reparei numa peça que estava em cima da cómoda. Era a miniatura de uma cidade, em acrílico, dentro de uma redoma repleta com água. Quando se agitava a água, flocos de neve caiam por cima da cidade. Achei aquilo bonito, nunca tinha visto uma peça daquelas. Nem a peça, nem a neve.

Foi então que me lembrei de desafiá-lo. Tantas vezes o rapaz me levara para as brincadeiras, que agora era a minha vez de tomar a iniciativa. Sentei-me à beira da cama e, puxando os lençóis, fui dizendo: "Coitadinho, está tão doente ...". O rapaz ficou furioso. Não sei se, por eu desdenhar dele ou por ele não estar de pijama, a verdade é que, segurando com força os lençóis, disse-me: "O que estás a fazer? Não vês que eu estou só em cuecas?". Interrompi logo a brincadeira, não esperava uma tal reacção. Eu reparara que ele tinha ficado zangado com o meu gesto, mas, mesmo assim, não estava disposta a abdicar. Perguntei-lhe: "Então, tens vergonha de mostrar as cuecas?" - e ameacei puxar os lençóis de novo. Ele repeliu-me com força. Era óbvio que naquele dia, não estava para brincadeiras. Fiquei furiosa. Sempre com tantas brincadeirinhas, sempre tão simpático e atencioso e agora, por uma coisinha de nada, fazia-se de virgem ofendida. Pois quem ficava ofendida era eu! Levantei-me e disse-lhe que me ia embora. Ele ainda perguntou-me se não voltava na segunda-feira para me despedir. Por um instante, pareceu-me que estava arrependido. Respondi-lhe que não. E não voltei mesmo.

28.9.05



Acabara de entrar num templo. Era, sem dúvida, um Templo Grego, com colunas e estátuas de ambos os lados do corredor, que ia percorrendo lentamente. Estava meio escuro, já era noite, muito provavelmente. Havia uma sensação de insegurança no ar. Foi então que olhou para cima e desviou-se ligeiramente. Aquele gesto fora suficiente para vislumbrar a pessoa que acabara de se esconder por detrás de uma estátua. Entre duas colunas, restara um espaço vazio. Era o da estátua que acabara de cair mesmo ao lado dela e que, por pouco, não a atingira.

22.9.05


Monet - Gare St. Lazare

Fade to Grey / Devenions gris

One man on a lonely platform
One case sitting by his side
Two eyes staring cold and silent
Show fear as he turns to hide
We fade to grey
We fade to grey

Un homme dans une gare isolée
Une valise à ses côtés
Deux yeux fixes et froids
Montrent de la peur lorsqu'il se tourne pour se cacher

Sens la pluie comme un été anglais
Entends les notes d'une chanson lointaine
Sortant de derrière un poster
Espérant que la vie ne fût si longue

Feel the rain like an English summer
Hear the notes from a distant song
Stepping out from a back drop poster
Wishing life wouldn't be so long

We fade to grey
We fade to grey

Visage - We fade to grey

14.9.05

O Neo-Feudalismo



Por vezes, ponho-me a pensar porque é que a Fraternidade e a generalidade dos intelectuais portugueses e estrangeiros chamam a este sistema económico de "Neo-liberalismo". Pois, para mim, o actual estado das coisas assemelha-se muito mais ao feudalismo medieval, com a única diferença de que não estamos perante um sistema de meia dúzia de senhores feudais que controlam 80 ou 90% das terras cultiváveis do país - que, por sua vez, são trabalhadas pelos seus servos (os escravos da época) - mas sim, um sistema de grandes corporações e multinacionais que esmagam as pequenas empresas com uma concorrência desleal (eles dizem que é leal) e onde a maioria das pessoas mendiga por um emprego. Sinceramente, isto para mim, não é neo-liberalismo, é neo-feudalismo.

Ontem, ouvi no Telejornal que o governo de Sócrates aprovou a construção de mais 160 super e hipermercados no país. Trata-se de mais uma medida que visa destruir o pequeno comércio, à volta do qual gravitam outras tantas pequenas empresas como a minha. É certo que tal medida não me vai prejudicar mais do que eu já fui até agora, porque estou certa que os 160 super/hipermercados serão construídos no interior do país. Não é de agora que isto acontece. Entra governo, sai governo, seja PSD ou PS, as medidas são sempre, rigorosamente, iguais. Desde o maldito dia em que decidi entrar de sócia numa pequena empresa e investir o pouco que tinha na Parvónia, que só me lembro de medidas prejudiciais às Pme's. E, francamente, estou cansada de imaginar maneiras de contornar a crise. Há alguns anos atrás pensei que se investisse na produção de software poderia fazer face à concorrência das grandes superfícies na área do hardware. Ledo engano. Passados uns anos, até software já vendiam nos hipermercados. Depois, pensei em especializar-me em nichos de mercado. Criar software específico. Mal qual o quê!! As empresas estão a fechar às catadupas!!! Neste país de funcionários públicos, restaurantes e cafés só tem direito à sobrevivência quem pertencer às "boas famílias" ...

Há tempos fomos contactados por um chinês. Queria comprar software porque ainda não tinha facturação na empresa, que já estava aberta há bastante tempo (os chineses até agora tinham isenção de impostos até 5 anos!). Ah, ah, ah ... apetece-me rir ... Chinês só compra de chinês. Até na informática ...

Este final de mês, mais uma pessoa vai engrossar as filas do desemprego. Não posso continuar a pagar-lhe um salário. Tenho de cortar ao máximo nas despesas. Tenho que fazer o pagamento por conta no final do mês. Eu própria já só recebo o suficiente para pagar as despesas de casa. Não faço poupanças, não tenho planos para o futuro. Enquanto eu puder me endividar para pagar as despesas, fá-lo-ei. E, se no futuro, isto der para o torto, quero que saibam que NÃO PENSO EM EMIGRAR. Fico por cá, mesmo que esteja na sarjeta. E, se Deus quiser (ou o Diabo, que está mais em voga actualmente), muitos mais hão-de fazer como eu. Um dia, a classe governante há de pagar pelos seus erros e irresponsabilidades.

7.9.05

Mariana


Morte da Virgem - Mestres de Ferreirim

"In a sea of faces, in a sea of doubt
In this cruel place your voice above the maelstrom
In the wake of this ship of fools I'm falling further down
If you can see me, Marian, reach out and take me home.....

I hear you calling Marian
Across the water, across the wave
I hear you calling Marian
Can you hear me calling you to
Save me, save me, save me from the
Grave..."

Sisters of Mercy - Marian

1737. Com sessenta e seis anos, a morte aproximava-se cada vez mais à medida que os dias passavam. Mesmo assim, Pedro sentia-se com vigor suficiente para durar ainda muitos anos, tinha sobrevivido a várias epidemias, não era uma doença qualquer que o punha de cama. Porém, o mesmo já não podia dizer dos filhos. Com alguma frequência vinham as febres e lá ficavam acamados. É certo que podia considerar-se um felizardo, a vida lhe tinha sido generosa. À parte o bebé que morrera alguns dias depois do nascimento, não perdera nenhum dos dez filhos que tivera. De facto, alguns já estavam mesmo casados e aproximava-se a hora de decidir quem lhe iria suceder na casa. Pensava em João. Embora não fosse o mais velho deles todos, com dezassete anos, João assumia, em muitas ocasiões, as responsabilidades da casa paterna quando necessário, e não foram poucas as vezes em que tinha sido convidado para padrinho ali na freguesia. Sim, João lhe iria suceder na casa, isso era mais do que evidente, mas quanto a Leonarda, o futuro parecia muito incerto. Não sabia o que fazer com a rapariga. Ela tornara-se uma preocupação constante. Com vinte e sete anos, não lhe conseguia arranjar casamento. Interrogava-se por quê. Não teria beleza? Não, não era bem isso. Toda a gente sabia que Leonarda não era normal . Todos a achavam um tanto ou quanto estranha, calada demais, pensativa, absorta, ausente deste mundo ... E as pessoas não viam isso com bons olhos.

E foi então que, naquele final de ano, Deus resolveu pôr-lhe à prova. Mariana, a sua filha mais nova, de quinze anos, adoecera com uma doença desconhecida. Tinha febres altas e por vezes parecia não reconhecer as pessoas. Entrava em delírios e dizia coisas sem nexo. Instalaram-na na sala onde costumavam receber as visitas, perto das duas janelas viradas para o fontanário. Talvez fosse melhor para a rapariga estar ali sozinha, sem ser incomodada. Puseram no local ervas de cheiro a arder para purificar o ar. Dizia-se que essas coisas transmitiam-se pelo ar impuro. Mas de nada adiantou. A menina parecia piorar a cada dia que passava. Pedro sabia que, por vezes, os navios que vinham de fora traziam doenças quando atracavam nos portos. Talvez, numa das idas a Vila do Conde, a rapariga tivesse apanhado algo ruim. Mandaram chamar o padre. Precisavam de preparar a alma da menina antes do momento final. Seria impensável a rapariga morrer sem receber a extrema-unção.

Era noite quando o padre chegou, tarde demais para fazer o ritual. Os familiares informaram-no de que a menina tinha morrido de repente, já não dava sinais de vida. O padre limitou-se a acenar com a cabeça e a dar-lhe apenas a absolvição subconditione. A mãe, tristemente pensava: "Não recebeu a extrema-unção". Prepararam-lhe o funeral. Pedro chorava a morte prematura da filha mais nova. Tão jovem e tão sensível, aos sessenta e seis anos, era cruel ver a filha morrer desta forma. Enterraram-na dentro da igreja, junto ao altar de São Miguel. Não lhes passava pela cabeça que a rapariga não tinha morrido, mas apenas adormecera profundamente ...

2.9.05

Katrina

Estou impressionada com as imagens de destruição em Nova Orleães. Não era suposto uma coisa dessas acontecer nos Estados Unidos. Mas aconteceu, o que prova que a Natureza não escolhe as suas vítimas. Há algum tempo atrás, assisti a um documentário sobre tufões no território americano, sobre a existência de uma espécie de corredor onde esse tipo de fenómenos seriam frequentes. E nesse documentário alertavam para o facto de, se houvesse um tufão de escala 5, cidades como Chicago (se bem me lembro essa cidade estaria no tal corredor), não teriam qualquer hipótese de evacuação. Isto vi há cerca de três ou quatro meses no canal 2 e agora, para meu espanto, o sinistro aviso veio a concretizar-se. Esqueceram-se de que a Natureza não trabalha em décadas, mas em centenas e milhares de anos. E se deixaram que se continuasse a construir em cidades onde a ciência já demonstrou que não são seguras, pergunto-me se não terá sido tudo por culpa do vil metal ...

Mas o que me deixou ainda mais impressionada foi aquela cena de Bill Clinton à direita de Bush pai e filho. Nunca imaginei que fossem buscar o antigo presidente americano nesta hora difícil. Estariam em busca de apoio moral? Atentei na expressão de Bush pai e pareceu-me que ele não estava apenas preocupado (ah! o petróleo!), mas notei algo mais, seria culpa? Não posso evitar de referir a imagem que me surgiu à cabeça quando vi Bill Clinton ao lado dos dois Bush. Por estranho que pareça, lembrei-me de Santo Agostinho que, de devasso, passou a ser um dos maiores santos da igreja católica. Ora, bem precisa Bush do apoio de alguém que, apesar de tão martirizado pela comunicação social no caso Mónica Lewinski, ainda assim conseguiu manter no coração dos americanos a imagem de um bom presidente. E, estranhamente, ao mesmo tempo que me vinha a imagem do Santo ao olhar para o écran da televisão, uma voz interior dizia-me repetidamente: "Arrependei-vos, arrependei-vos" ...

1.9.05

Bom senso

Eu sei que não devia dizer isto, mas ...

Li algures na internet que cerca de 95% da produção diária de petróleo no Golfo do México está paralizada devido à passagem do furacão Katrina.
É caso para dizer ... qual protocolo de Kioto, qual invasão do Iraque, qual globalização, qual carapuça! No cômputo final, parece que a única força que mantém o bom senso é a força da ... Natureza ...

29.8.05

Senhora nas brumas


Maiden in the Mist - Louis Icart

O fim-de-semana acordara cinzento. Do local onde estava, na cama, olhou para as frestas do "store" e percebeu que caía uma chuva miudinha lá fora. Sentia-se a humidade no ar. O quarto, silencioso, envolto na penumbra, com a porta da entrada aberta ... Foi então que olhou para o lado e viu-a. A senhora estava ali, mesmo ao lado da cama, a contemplá-la. Não ria, nem chorava, apenas contemplava-a. Estava mais jovem do que quando morrera ...

- Avó!?

Acordou sobressaltada e olhou ao redor. Lá fora, a chuva miudinha continuava a cair, o cheiro a humidade no ar, a semi-escuridão, a porta da entrada aberta ...

De repente, uma ideia veio-lhe à cabeça. A avó estava a criticá-la. Não ria, nem chorava, mas o seu olhar condenava-a. Durante muito tempo, tentou compreender aquela visão que a oprimia, até ao dia em que finalmente descobriu que, afinal, quem censurava a avó não era outra senão ...a própria neta ...

25.8.05

A lenda da Chapeleira



Não é uma lenda, é um facto real conhecido pelas pessoas com mais de sessenta anos que vivem na encosta do Monte São Félix. Mas da maneira como me contaram, aquilo mais parece uma lenda saída das brumas de tempos imemoriais, e no entanto, aconteceu praticamente ... ontem ...

"Há muitos e muitos anos, no lugar da Bagoeira, existia uma mina que brotava da encosta do monte. Por ali, havia um caminho pelo qual a Chapeleira costumava passar quando ia à casa. Ora, em determinadas alturas, a mulher ficava de tal forma transtornada ao passar pela mina que desatava a correr feito um animal, não havendo ninguém que pudesse pôr-lhe as mãos em cima. Durante dias, ninguém sabia do paradeiro da mulher, nem mesmo o pobre do marido. Depois de várias buscas efectuadas, haviam de a encontrar no cemitério de Paradela. Estes episódios acabariam por repetir-se várias vezes e nem os avisos do marido para que não passasse pela mina, nem a sua força, conseguiam impedi-la de lá ir. Havia algo que a atraia naquele lugar. E havia quem jurasse a pés juntos tê-la visto passar por um dos inúmeros buracos que existiam nos muros por onde escorriam as águas. E assim passaram-se os anos ... Da última vez em que "aquilo" aconteceu, a mulher desapareceu por vários dias, e ninguém havia de a encontrar, nem no cemitério nem em parte alguma da aldeia. Porém, após vários dias de buscas, finalmente encontraram o seu corpo ... dentro de um poço ..."


A mina, hoje em dia, está parcialmente coberta por entulho, mas o caminho ainda lá se encontra ...


Embora com vestígios de práticas ... nada recomendáveis ...

22.8.05

A Indústria dos Incêndios ou eles falam, falam, falam e não fazem nada

Acabei de ler na "SIC Online" um artigo de opinião de um jornalista a respeito dos incêndios em Portugal, artigo esse intitulado "A Indústria dos Incêndios" e devo dizer que até achei bastante interessante o seu conteúdo. Provavelmente, tudo aquilo que o jornalista refere estará muito próximo da realidade. Porém, fiquei de pé atrás quando li o seguinte parágrafo:

"Há cerca de um ano e meio, o então ministro da Agricultura quis fazer um acordo com as direcções das três televisões generalistas em Portugal, no sentido de ser evitada a transmissão de muitas imagens de incêndios durante o Verão. O argumento era que, quanto mais fogo viam no ecrã, mais os incendiários se sentiam motivados a praticar o crime...

Participei nessa reunião. Claro que o acordo não foi aceite, mas pessoalmente senti-me indignado. Como era possível que houvesse tantos cidadãos deste país a perder o rendimento da floresta - e até as habitações - e o poder político estivesse preocupado apenas com um aspecto perfeitamente marginal?"


Olhe, sr. jornalista, até pode ser um aspecto marginal, e eu bem sei que não percebo grande coisa de psicologia, mas sempre ouvi dizer que, quando uma pessoa comete suicídio, na mesma semana, outras três ou quatro cometem o mesmo acto, apenas pelo facto de estarem psicologicamente fragilizadas. Presumo que com os pirómanos aconteça algo de parecido. Mas compreendo que, hoje em dia, dado o facto de as televisões serem empresas com fins lucrativos, a concorrência entre elas obrigue a que cada vez mais se valorize a tragédia e a dor em detrimento da informação, até porque, como bem diz a elite portuguesa, o zé povinho só quer saber de Fátima, Fado e Futebol, não é verdade? E há que lhes dar doses maciças dos três efes, a bem do lucro televisivo ...

Enfim, é triste o que se lê nos jornais deste país, mas mais triste ainda é viver numa terreola da província, com um medo enorme de que mais dia menos dia, as chamas também cheguem à casa dos nossos pais e eles percam tudo aquilo que andaram a amealhar (com grande sacrifício, diga-se de passagem) ao longo da vida. Realmente, viver em Portugal é perigoso ... Depois não se admirem que alguém fique chateado, é claro que eu fico chateada ...

10.8.05

How Soon is Now?



I am the son
and the heir
of a shyness that is criminally vulgar
I am the son and heir
of nothing in particular

You shut your mouth
how can you say
I go about things the wrong way
I am human and I need to be loved
just like everybody else does

I am the son
and the heir
of a shyness that is criminally vulgar
I am the son and the heir
of nothing in particular

You shut your mouth
how can you say
I go about things the wrong way
I am human and I need to be loved
just like everybody else does

There's a club if you'd like to go
you could meet somebody who really loves you
so you go, and you stand on your own
and you leave on your own
and you go home, and you cry
and you want to die

When you say it's gonna happen "now"
well, when exactly do you mean?
see I've already waited too long
and all my hope is gone

You shut your mouth
how can you say
I go about things the wrong way
I am human and I need to be loved
just like everybody else does

The Smiths

1.8.05

O Verão Quente



Os pais de Helena tinham acabado de partir rumo à Alemanha e, mais uma vez, colocaram-me perante a hipótese de dormir na Torre. A bem dizer, eu já estava à espera que tal acontecesse, mas secretamente mantivera a esperança de que alguém me pudesse oferecer outro lugar para dormir. Quem sabe o tio Luís me arranjasse um quarto em sua casa. Ele também morava ali perto, tinha construído uma moradia nos terrenos junto ao pomar, e embora eu soubesse que, dormindo por lá, teria de aguentar os eternos desafios de Bruno, sempre era melhor do que ter de dormir naquela torre velha onde as aranhas se tinham instalado tão confortavelmente nos últimos anos. Mas ninguém me ofereceu quarto. E perante a insistência da minha mãe em eu fazer companhia aos meus irmãos na Torre, perguntei-lhe se não podia dormir junto com a avó. Acedeu sem pestanejar muito. Sabia que se insistisse comigo, eu era capaz de abrir a goela num berreiro e ela não estava para aturar cenas dessas. E foi assim que me livrei, pela segunda e última vez, de lá dormir.

Naquela manhã, a seguir à partida dos pais de Helena, acordei cedo, como habitualmente fazia, e corri até à Torre para acordar os meus irmãos. Sabia que eram os últimos dias que passávamos naquela propriedade e sentia que devíamos aproveitar ao máximo todos os momentos que ainda nos restavam. Havíamos de correr por ali fora, como fizéramos nos últimos tempos, subindo as escadas da Eira, e escondedo-nos no Coberto. Era uma imagem que aquela propriedade conhecera muitíssimo bem. Há séculos que crianças tinham subido por aquelas escadas e trepado por aquelas árvores. Por vezes, aconteciam os acidentes, como daquela vez em que outras crianças, noutros tempos, se tinham espetado nos espinhos de uma figueira-da-índia. Tinha sido há quase trinta anos. E para evitar novos acidentes, o avô decidira acabar com aquela planta maldita - a figueira do inferno - como lhe costumavam chamar. Nós não éramos muito diferentes daquelas crianças de há trinta anos. Mas talvez eu, sim. Talvez já nessa altura não fosse tão ingénua como seria de esperar para a minha idade. Já nesses tempos eu andava à procura de um tesouro escondido. E naquele local tudo era tão velho, tão antigo, que havia de existir ali um tesouro enterrado.

Há trinta anos, uma criança brincava no pomar. E ao escavar a terra, encontrou uma pequena moeda. De um lado, o esboço de umas cruzes, uma grande e outra mais pequena. Do outro lado, uma estrela de cinco pontas dentro de um círculo - o signo de Salomão. A moeda era do tempo de D. Afonso I. A criança havia de a entregar à mãe, que a mandou limpar e a pendurou num cordão ao pescoço. A história da moeda havia de ser contada de avó para neta, mas a memória encarregar-se-ia de apagá-la, até ao dia em que alguém descobriria que um dos símbolos da moeda era o mesmo que costumava desenhar inconscientemente no papel.

7.7.05

Oclusão


Hieronymus Bosch - Painel do Inferno

Vibrações constantes
de seres desmembrados
sendo arremessados
pelo espaço sideral
Organismos vivos
que manifestam desejos
de festim
Pequenos paquidermes sádicos
Que vomitam
Horrores de civilização
Emitindo sons estridentes
depois de saciados
com entulho espacial
Oclusão prematura
de tempos estéreis
Poções exageradas
de paixões exacerbadas
Destruições aconselhadas
por visões atrofiadas
Chuva de meteoros alcalinos
de devastação micro-celular
Com arrependimento tardio
de silhuetas macabras
Que deambulam pela orla periférica
de abutres saciados.

Luís Ramos

A Guerra dos Mundos

Ou de como um falso alarme desencadeou uma reacção de pânico. O filme começou hoje em Portugal, mas, enfim, não era disso que eu queria falar ...
A dúvida que me aflige é saber, como é que, depois de tantas medidas de combate ao terrorismo, principalmente em Inglaterra, se consegue mesmo assim furar os esquemas de segurança com uma operação que exigiu, no mínimo, muita concentração, coordenação e dinheiro. E outra coisa que me deixa intrigada é saber porque é que, sendo Israel o principal inimigo desses terroristas, o máximo que se consegue fazer naquele país são os ataques suicidas. Das duas uma, ou os serviços secretos israelitas funcionam muito melhor do que os serviços secretos europeus, ou há qualquer coisa aqui que não bate certo ...

5.7.05

Mensagem


"Não há memória que della sahissem homens insignes,
e só que no seu monte floreceo em virtudes
Sam Felis Eremita, o primeiro das Hespanhas".


Abade Sebastião Luis Pinhão - Memórias Paroquiais, 1758


- Ficas tu com um livro e eu fico com outro.

A voz de Helena acordara Luísa dos seus pensamentos. Tinha estado a pensar em como a vida por vezes dava reviravoltas surpreendentes, mas agora não era altura de perder tempo com divagações. À sua frente, estavam três livros volumosos à espera de serem decifrados. Helena escolhera o livro de baptismos, de finais do século XVIII. Não era de admirar. Escolhia sempre o livro mais recente, pois não se dava muito bem com a escrita antiga. Por mais livros que tivesse lido, por mais pergaminhos que tivesse estudado, quase sempre Helena tinha que pedir ajuda à prima para interpretar uma letra menos bem desenhada. Luísa, pelo contrário, parecia ter uma predisposição inata para decifrar aquelas expressões antigas. É compreensível. Sempre sentira um fascínio enorme pelo passado. Lembrava-se de, ainda criança, folhear enciclopédias com fotografias de escavações arqueológicas. Tinha onze anos quando viu pela primeira vez o desenho de um campo cultivado e por baixo dele uma vila romana. A ideia de que podiam existir habitações mesmo debaixo dos nossos pés era fascinante, fazia lembrar as histórias dos tesouros enterrados pelos piratas. Foi nessa altura que colocou na cabeça que havia de ser arqueóloga. Era assim que respondia quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande: arqueóloga. A maior parte das vezes, porém, tinha de explicar o significado daquela palavra. Mas a sorte, a malfadada sorte, não estava a seu favor. Não nascera num país de antigas civilizações, e menos ainda num país que se preocupasse em preservar a História. Ali tudo era demolido para construir de novo e o antigo era simplesmente enterrado e esquecido, como se houvesse uma força que ditasse que naquele país a História ainda estava por fazer.

Abriu o livro de óbitos e vasculhou por nomes conhecidos. À medida que ia folheando as páginas, apercebia-se dos momentos de crise por que passara o país, momentos de peste, momentos de incerteza. Eram épocas de grande mortalidade infantil, de expostos na roda que a Mesa da Misericórdia mandava criar em casas de agricultores, de missas por alma de pessoas ausentes há muitos anos e de quem não havia quaisquer notícias. Mas Luísa não se limitava a anotar apenas os nomes de família. Há muito tempo que aquela pesquisa tinha deixado de ser apenas uma curiosidade genealógica. Guiava-a um sentido de justiça muito próprio, era uma procura pela Verdade que, no seu íntimo, sentia ter-lhe sido ocultada. E se havia algo que detestava eram as meias-verdades. Quando sentia que estavam a utilizar uma meia-verdade para atingir um determinado objectivo, armava-se em cavaleiro e partia para atacar moinhos de vento. Sabia, no entanto, que era uma luta inglória.

Parou para anotar o assento de um nome conhecido. Era de Vitória, uma das filhas de Pedro Pires. Morrera sem filhos e pedira várias missas pelo bem de sua alma: uma a Santo André, outra a São Pedro de Rates, à Sra. da Conceição, a São Sebastião, a São José, a Santa Rita, ao Santíssimo Sacramento, ao Anjo da Guarda, ao Santo Nome de Jesus, à Sra. do Carmo. Não havia dúvidas de que havia muita fé naquele último pedido e que Vitória contava com todos estes santos e santas para enfrentar o Desconhecido.

30.6.05

E=mc2




Há muito tempo que queria pôr este título numa das minhas mensagens, mas sempre que tentava fazê-lo, acabava por pensar: "Ainda não está na hora, espera pela altura certa", e então ia adiando. Até que chegou o dia em que encontrei a inspiração divina que faltava para esta minha ambição. É que, pelos vistos, Portugal acordou do seu sono secular e descobriu que tem um grave problema energético. E quem é que surge das brumas para fazer o papel de salvador da pátria? Ora, quem mais senão Patrick Monteiro de Barros, o "especialista em petróleo", segundo as legendas do Jornal da SIC. Se bem compreendi, Monteiro de Barros pretende convencer o governo a instalar uma central nuclear em Portugal, seguindo a lógica de que "se a maioria dos países tem, incluindo a Espanha, porque é que nós não haveríamos de ter uma?"

Pelos vistos, Monteiro de Barros não é o único nessa cruzada a favor do nuclear, sendo apoiado por vários outros empresários nesta ideia. Pronto, estou mesmo a ver: o senhor do petróleo chegou à conclusão de que depender do ouro negro já não estava a dar. Os árabes andam a dificultar a vida aos ocidentais, os chineses andam a correr atrás do petróleo como doidos, contribuindo para o aumento dos preços, e as reservas não são eternas. Vai daí, teve a brilhante ideia de, antes que a coisa desse para o torto, propor a energia nuclear como alternativa. E então, vem a SIC e faz a reportagem, tão bem feitinha, tão bem feitinha, que eu diria que aquilo era mesmo para convencer o zé povinho. Porque se bem me lembro, a energia nuclear não é essa maravilha toda que eu vi na reportagem. Por exemplo, ninguém mencionou o lixo nuclear, o tratamento dos resíduos, muito menos os custos de construção de uma tal estrutura. E depois, fiquei a pensar se a um país com a dimensão de Portugal compensa esse tipo de alternativa ...

Pronto, eu confesso que tenho aversão à palavra "nuclear". Eu sei que não entendo nada do assunto, mas dificilmente me irão convencer de que esta forma de energia é mais segura e económica do que outras. Fiquei com a impressão de que o Monteiro de Barros, talvez na iminência de ver o negócio da sua vida ir por água abaixo (salvo seja), agarrou-se à ideia do nuclear porque é a alternativa que mais convém a ele e aos "amigos", mas tenho sérias dúvidas se será a melhor para o país. Enfim, mas atendendo a que, em primeiro lugar, estão sempre os "negócios da família", como acontece frequentemente em Portugal, se calhar é mesmo para aí que caminha a opção da elite governante ...

É que, para mim, a palavra "nuclear" está ligada a um dos períodos mais negros da minha vida, ao ano de 1986, o "annus horribilis" - como diria a outra senhora - da minha modesta história. Foi o ano em que teve início a minha primeira grande depressão, em que perdi completamente a ilusão de viver. Foi um ano difícil, tão difícil que cheguei a pesar 49 kgs, medindo 1.70 mts de altura, e depois de atingir tal peso não tive sequer coragem de voltar a pesar-me novamente, com medo de ter perdido ainda mais peso. Portanto, 49 kgs. foi o meu peso oficial desse período. E há coisas que, nesses momentos difíceis, ficam inexplicavelmente associadas para o resto da vida. Uma delas foi o acidente de Chernobyl, outra foi uma música que, na altura, devia andar nos tops, mas que eu não suportava ouvi-la, porque me deixava triste (enfim, em 1986, tudo me deixava triste). A canção tornou-se de tal modo insuportável para mim que, ainda hoje, quando calha de a ouvir no rádio, eu mudo logo de estação. Eu sempre soube que o grupo que a tocava chamava-se Big Audio Dinamite, em que participava um elemento dos Clash, mas nunca me dei ao trabalho de saber o nome da canção. Ironicamente, anos depois, descobri que o tema chamava-se "E=mc2". Afinal, eu tinha mesmo motivos de sobra para não gostar da canção. Enfim, as pessoas normais poderão pensar que detestar uma música não pode justificar a aversão ao nuclear, mas para mim ... não há coincidências ...

25.6.05

Pedro


Francisco Venegas
Santa Maria Madalena - c. 1590

Domingas Gonçalves não se fez de rogada ao pedido. Já há algum tempo que pretendia casar-se e o facto de conhecer Pedro há bastantes anos dava-lhe confiança suficiente para aceitar a proposta. Na verdade, ambos moravam na mesma localidade da aldeia, vendo-se frequentemente e, por isso, se havia uma pessoa que conhecia bem os hábitos de Pedro Pires, esse alguém era Domingas Gonçalves. E assim trataram dos preparativos, fizeram correr os banhos e, em março de 1710, os noivos contraíram matrímónio na pequena igreja de São Miguel. Não faltaram convidados para a boda - gentes da localidade e os parentes de Rio Mau e da Apúlia. Como não podia deixar de ser, organizou-se uma festa, com muita comida, regada com o vinho da casa.
Cerca de um ano depois, nascia a primeira filha - Leonarda - e, no ano a seguir, Domingas. De todos os oito filhos que tinha, era fácil perceber que as raparigas estavam em vantagem.

Entretanto, tinham chegado novidades do outro lado do Atlântico. A guerra finalmente acabara e o capitão João Duarte se tinha instalado numa vila com o nome de Ribeirão do Carmo, no interior das Minas Gerais. O irmão contava que por ali circulava muita gente, todos atrás das jazidas de ouro que existiam em abundância naquela região e por causa das quais havia rebentado a sangrenta guerra. Muitas pessoas se estavam a estabelecer naquela província: aventureiros, homens de negócio, artistas e pessoas das mais variadas origens e índoles; todos acorriam àquele local na esperança de poderem encontrar a tão almejada pepita que lhes pudesse abrir as portas para a ascensão social. Era, por isso, uma zona de natural conflito, onde a presença militar impunha-se constantemente para pôr ordem naquele caos humano. Ali se ergueria a primeira cidade com características modernas no Brasil: administração burocrática, fiscalização e colecta de impostos. Até um órgão, único em toda a colónia, a pequena vila já podia gabar-se de ter. À semelhança do que viria a acontecer no oeste americano mais de cem anos depois, muita gente enriqueceria naquela região do dia para noite. João Duarte contava que tinha estado em casa do tio paterno de Pedro, João Pires - sim, porque se havia um nome que abundava na família, esse nome era João - que se estabelecera em Vila Rica, não muito longe de onde ele vivia.

Pedro ficara contente com as novidades, era bom saber que o irmão sobrevivera à guerra e que se estava a adaptar bem àquela realidade tão diferente do local onde nascera. Não havia dúvidas de que o irmão estava bem, assim como ao próprio Pedro a vida corria bem. Estranhou o facto de João ainda não se ter casado, não constava sequer que tivesse filhos. Filhos ... E ele já ia em oito! Tinha de pensar no futuro deles, principalmente as raparigas do primeiro casamento, que estavam a entrar na idade de casar. Sim, as filhas em breve iam entrar na adolescência e era preciso começar a tratar de arranjar-lhes bons pretendentes, antes que algo de mau lhes pudesse acontecer. De facto, ter filhas no século XVIII não era nada fácil, havia que estar sempre atento e não permitir que qualquer nódoa pudesse cair sobre elas. Não faltavam casos de mães solteiras que ficavam na miséria em virtude de não conseguirem arranjar casamento. De repente, sentiu-se invadir por um estranho pessimismo, tentou afastar os pensamentos negativos. Não! Certamente que Deus não permitiria que tal coisa acontecesse às suas filhas. Certamente, Ele não lhe daria esse desgosto.

23.6.05

Arrastando o seu cadáver


Bruegel
O triunfo da morte

E assim, em homenagem a esses autênticos cavaleiros do asfalto, corajosos cruzados imunes ao medo da morte, dedico esta singela canção.


ARRASTANDO O SEU CADÁVER
[Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael]

É demencial. Não há palavras que consigam dizer o horror
Vi um pobre homem agarrado ao que restava da sua mulher
Errando pela baixa
Os olhos fixos num horizonte perdido
Sem uma palavra, sem um som
Arrastando a carcaça desfigurada por entre o trânsito do fim da tarde
Passei sem conseguir dizer nada

Ninguém dizia nada. O silêncio
Acompanhava o olhar vazio. A dor

A vaguear por entre as ruínas e o trânsito do fim da tarde
As pessoas apressavam-se por causa do cair da noite
E o pobre homem seguia um destino sem rumo
Arrastando o seu cadáver
E o pobre homem
Seguia um destino sem rumo
Arrastando o seu cadáver

Ninguém dizia nada. O silêncio
Acompanhava o olhar vazio. A dor

Mão Morta

13.6.05

Canção de Embalar


Gerard Dubois
Easing



Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer

Zeca Afonso

8.6.05

O Verão Quente



As férias já estavam a chegar ao fim, mas as crianças mal tinham reparado que já se passara quase um mês de folia. Tinham sido dias de muita brincadeira e descoberta e mal nos déramos conta da passagem do tempo. É verdade, confesso que, nesses anos, se havia algo que não me preocupava minimamente era a passagem do tempo. E, embora toda a minha vida me tivesse sentido muito mais velha do que realmente era, por outro lado, procurei manter sempre bem acesas as memórias de infância, como uma espécie de remédio caseiro que podia utilizar nos momentos de crise. Sim, eu era a mais velha das crianças, não apenas por ter nascido primeiro, mas, sobretudo, porque sempre fora muito ajuizada. Desde muito cedo aprendera o significado da palavra "sacrifício". E de tão certinha que era, os rapazes haviam de inventar uma alcunha especial para mim - velha. Claro que havia de ser o meu irmão a ter uma ideia tão original. Os outros limitavam-se a repetir por arrasto.

Entretanto, os pais de Helena tinham começado os preparativos para retornarem à Alemanha. Normalmente, eles eram sempre os primeiros a ir embora e aquele ano não iria ser excepção. Só tinham de acabar de pôr em ordem as últimas burocracias pendentes, terminar as pequenas obras que faltavam na casa e prepararem-se para realizar a longa viagem de automóvel, geralmente feita de um só fôlego, quase sem descanso, rumo à Alemanha. E então, a moradia nova, até então cheia de vida, hibernava um ano inteiro, totalmente fechada, reabrindo-se apenas no verão seguinte.

Também eu já preparava as minhas malas (onde é que vou dormir quando os pais de Helena se forem embora?), arrumando algumas coisas de que não iria fazer mais uso, porém no nosso caso, não havia certeza se poderíamos voltar no ano que vem como os outros. Sabia que a minha mãe sofria com a partida. Aqueles preparativos todos, aquela tristeza no ar, faziam-na lembrar-se daquele dia em que fora despedir-se do pai que se encontrava doente na cama, "já demente", como diziam na altura, há cerca de dez anos. Tinha ido dar-lhe um beijo de despedida, mas o pai virara-se para ela e, num momento de lucidez, disse-lhe: "Sei que não te volto a ver, que te vais embora. Mas não te esqueças de Portugal". E chorou de seguida. Ninguém soube explicar como ele tivera conhecimento da viagem, ou como, na confusão da sua mente, ele compreendera tudo o que estava a acontecer. Talvez, afinal, estivessem enganados, talvez a doença de que ele padecesse não fosse demência, mas sim, lapsos de memória, aquilo que futuramente ficaria conhecido como doença de Alzheimer. E, talvez, num momento de lucidez, ele tivesse compreendido que a filha ia emigrar. O certo é que ela partiria com mágoa no coração e, anos mais tarde, quando soube da morte do pai, lá longe onde vivia, nunca mais deixou de se sentir culpada por o ter deixado. E agora que ia partir novamente, essas lembranças acorriam-lhe à mente mais uma vez. E o peso dessa mágoa fazia com que sempre que nos falava do avô, o fizesse com admiração. Que era muito alto e magro, que lia muito, que era inteligente e educado, que tinha desafiado a família para casar com a avó. Parcialmente deserdado, foi o castigo que lhe impuseram. Mesmo assim, ficara com a casa e a incumbência de cuidar da mãe na velhice.

E, sem saber,a minha mãe, ao contar essas histórias tristes, acabaria por me influenciar muito mais do que ela podia imaginar. Talvez por nunca ter conhecido o avô, ou não encontrar alguém com quem me pudesse identificar, ou talvez ainda por algum livro que li e me tivesse inconscientemente influenciado, talvez, enfim, por todas estas razões juntas e outras que não consigo descortinar, eu acabasse por idealizar o meu avô e transformá-lo numa espécie de fantasma, mais um a juntar à minha vida, mais um a fazer companhia ao de Pedro Pires, seu legítimo antepassado.

28.5.05

Morta-viva


Natureza morta-viva
Salvador Dali

Nada, nem ninguém, a tinha preparado para a experiência que estava prestes a viver naquele dia. Jamais ouvira falar daquilo, não havia memória de um episódio igual na sua vida, não tomara remédios, não bebera ... Era apenas mais um dia normal de trabalho, como outro qualquer. Acordara perto das oito horas da manhã e tencionava entrar às nove no emprego. Pelas frestas da janela, podia ver que fazia sol lá fora. Motivos profissionais haviam-na obrigado a viver sozinha naquela casa, estava sozinha naquele quarto. Ainda tinha uma hora para se vestir, não estava com pressa. Deixou-se ficar ali mais um tempo.

E então saiu do quarto, passou pelos portões, atravessou a rua e pôs-se a andar na cidade, sempre a seguir aquela voz sem corpo, aquela voz que, embora nada dizendo, atraía-a como um íman. Andaram pelas ruas da cidade uma manhã inteira, carros e pessoas a passarem normalmente, eram as ruas que todos os dias ela percorria a caminho do trabalho. Começou a subir uma escadaria, eram os degraus de uma casa, a voz já estava lá em cima, no alto das escadas, e então, de repente, lembrou-se que tinha que entrar no emprego às nove horas, já estava atrasada, com certeza! Olhou para cima, a voz impelindo-a a subir, e então pensou que não, que tinha de voltar, já estava atrasada. É quando dá-se conta, horrorizada, de que não conseguia mexer-se. Estava deitada na cama daquele quarto e ao mesmo tempo a subir as escadas de uma casa. Num milésimo de segundo, teve consciência de que não conseguia acordar. Poderia ficar assim vários dias até que alguém desse pela sua falta. E, mesmo que dessem pela sua falta, e encontrassem o seu corpo, como conseguiria acordar? Tentou acalmar-se, usar da razão, e mentalmente imaginou-se a fazer o percurso inverso, em marcha atrás. Desceu as escadas, atravessou a cidade, cruzou o portão e chegou ao quarto, acordando finalmente.

Ainda mal acordara e olhou para o relógio. O episódio durara apenas um minuto, mas a forte sensação de perigo permaneceria durante muito mais tempo na sua memória.

19.5.05

Mensagem



O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado


Fernando Pessoa - "O Andaime"


O domingo amanhecera chuvoso, demonstrando má vontade contra quem quer que ousasse meter os pés na rua. Mas a decisão tinha sido tomada e nem o mau tempo seria desculpa para adiar, por mais uma vez, a ida à residência paroquial. Luísa aguardara a semana inteira por esse dia, com expectativa. Havia meses que tentava completar, em vão, aquela linha genealógica que faltava, e tudo porque o livro de baptismos não aparecia em lugar nenhum. Helena encarregara-se de indagar junto do pároco da aldeia se, porventura, tinha conhecimento de algum livro antigo na residência onde vivia. Só mesmo Helena para fazer isso. O seu curso de Direito tinha-lhe dado algum estatuto na freguesia, pelo que o padre, certamente, não se iria negar a qualquer pedido que ela lhe fizesse. E qual não foi a surpresa quando o pároco lhe disse que sim, que tinha conhecimento, não de um, mas de três! Os livros, afinal, nunca tinham saído daquela localidade e, agora que falavam nisso, foi uma coincidência elas terem aparecido precisamente naquela altura para os consultar. É que a residência paroquial tinha sofrido obras de beneficiação há bem pouco tempo e alguém encontrara aqueles livros na cave, junto a uns sacos de batata. Foi uma sorte o padre estar lá na altura. Tinha-os guardado para enviar à Diocese de Braga, mas agora que apareceram pessoas interessadas em consultá-los, teria de adiar o envio.

As duas estavam radiantes de felicidade, afinal, tudo havia sido muito mais fácil do que inicialmente tinham imaginado. Depois de tantos meses de correria, tanto tempo gasto em pesquisas, de muitos sucessos e alguns fracassos, haviam chegado, finalmente, ao livro que faltava. Era estranho pensar que estavam em posse de informações que mais ninguém possuía, nem conservatória, nem arquivo distrital. Nem mesmo os mórmons tinham tido acesso a estas informações. Como que por magia, o livro havia simplesmente desaparecido, numa cave, junto a uns sacos de batata e de repente surgia, quase duzentos anos depois, no preciso momento em que as duas mulheres procuravam por ele.

De forma simpática, o pároco indicou uma sala onde as duas podiam estudar à vontade, sem serem incomodadas. Notava-se que as obras na casa ainda não tinham terminado, faltava, pelo menos, a parte da pintura. Mas a residência estava a ficar bonita, tinham tentado manter a traça original e o interior era confortável e moderno. Entraram numa sala que dava para os fundos da casa e ficaram viradas para uma parede envidraçada de onde se podia avistar toda a aldeia.

- Foi uma boa ideia terem colocado aqui uma parede de vidro - disse Helena - Assim, aproveita-se ao máximo a luz do dia, mesmo em tempo de chuva.

O pároco entrou e colocou os três livros em cima da mesa. Nas capas, imundas dos séculos de manuseamento, podia ler-se os seguintes títulos: Baptizados - 1789/1850, Óbitos, Testamentos ...

- Fantástico - disse Luisa - Há aqui um livro de testamentos, não podíamos ter tido melhor sorte.

Sentaram-se as duas e prepararam-se para ler os livros.

- Já viste a sorte que tivemos? Acertámos em cheio nesta linha, não é verdade? - disse Helena - Ainda não me esqueci daquela primeira vez que vimos o nome de Pedro Pires, lembras-te? Eu acredito nessas coisas ...

Luísa estranhou que Helena voltasse a tocar no assunto. Mas o certo é que também ela ficara intrigada com aquela primeira visão. Quantos assentos comportaria um microfilme? Algumas centenas, por certo. E ao rebobinar a fita, o funcionário havia de a fazer parar justamente no assento de óbito de um tal Pedro Pires de Sá, de quem não faziam a menor ideia. É certo que procuravam Sás naquela freguesia, mas não Pires de Sá. Realmente, tinha sido tudo muito estranho. Até porque, como lhes faltavam muitas informações no início, tinham decidido investigar meio ao acaso. E então escolheram seguir a linha daquele nome que lhes tinha aparecido logo à primeira vez. E agora, passados todos estes meses, que as peças se encaixavam todas direitinhas umas nas outras, aquela visão inicial voltava a colocar-se nas suas mentes. Luísa questionava-se sobre o que quereria dizer toda aquela sequência de acontecimentos. Sabia que tinha fortes motivos para pensar nisso. Não era a primeira vez que lhe parecia estar a ser guiada por uma estranha mão invisível. No seu íntimo, perguntava-se se todos aqueles acontecimentos tinham sido apenas fruto de uma série de coincidências ou se tudo aquilo não faria parte de algo maior, quem sabe, de uma mensagem ...

13.5.05

The Logical Song






When I was young, it seemed that life was so wonderful,
a miracle, oh it was beautiful, magical.
And all the birds in the trees, well they'd be singing so
happily,
joyfully, playfully watching me.
But then they send me away to teach me how to be sensible,
logical, responsible, practical.
And they showed me a world where I could be so dependable,
clinical, intellectual, cynical.
There are times when all the world's asleep,
the questions run too deep
for such a simple man.
Won't you please, please tell me what we've learned
I know it sounds absurd
but please tell me who I am.
Now watch what you say or they'll be calling you a radical,
liberal, fanatical, criminal.
Won't you sign up your name, we'd like to feel you're
acceptable, respectable, presentable, a vegetable!
At night, when all the world's asleep,
the questions run so deep
for such a simple man.
Won't you please, please tell me what we've learned
I know it sounds absurd
but please tell me who I am.

Supertramp

11.5.05

4.5.05

Pedro de Rapijães


Baptismo de S. Agostinho, 1706
Bento Coelho da Silveira
Alhandra - Igreja de São João Baptista



Era de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1708 anos. Como que acompanhando os ventos de viragem trazidos pelo novo Rei que há poucos meses subira ao trono, também a vida de Pedro acabaria por sofrer uma mudança no mesmo ano em que D.João V se casava com Mariana da Áustria. Aos 36 anos, ficava viúvo de Maria de Azevedo, com seis filhos menores para criar. A viuvez masculina era frequente na época, pelo que era difícil encontrar um homem que não se tivesse casado mais do que uma vez na vida. E o facto de estar sozinho e com seis filhos para educar colocava-o perante o problema de ter de encontrar uma mulher para cuidar das crianças, duas das quais praticamente de colo. O certo é que ele não poderia encarregar-se dessa tarefa, nem confiava suficientemente numa criada para tal missão. Não, era muito melhor que as crianças tivessem uma madrasta para cuidar delas, até porque ele próprio tinha sido educado por um padrasto, a quem sempre vira como pai. Além disso, uma mulher sempre podia tratar melhor daqueles assuntos tipicamente femininos. Quem se encarregaria de vender os produtos agrícolas nas feiras? Quem trataria do vestuário e da alimentação? Quem limparia a casa? Comprar um escravo estava fora de questão, até porque esse era um bem de luxo e só as casas mais abastadas tinham fortuna para tal. A sua riqueza vinha da terra, da qual tirava o sustento da família e ainda podia amealhar algum dinheiro, depois de pagar a moleiros, jornaleiros e seareiros pelos serviços prestados, o que quase sempre acontecia em géneros. Ora, bem vistas as coisas, ele até nem era mau partido: tinha terras, cavalos, algum dinheiro e, sobretudo, era visto com respeito pelas gentes da aldeia, afinal todos o queriam para padrinho, certamente não seria difícil encontrar uma mulher que não se importasse de cuidar das seis crianças. Agora que pensava nisso, dava graças a Deus por ainda não ter experimentado o desgosto de ver morrer um filho. Quem sabe Deus não estaria a compensá-lo pelo facto de já ter nascido órfão.

Ora, Domingas Gonçalves, a filha do caseiro da igreja, ainda estava solteira e acabara de herdar uma pequena fortuna por morte dos pais. Sim, esse pormenor era importante, pois o facto é que dificilmente uma mulher podia casar-se se não tivesse dote. E morando ali tão perto, e conhecendo tão bem a família, talvez ela fosse a escolha ideal. Além do mais, com tanta terra para administrar, nunca haveria o perigo das grandes viagens para fora, como acontecia com os mareantes. Com esses não havia hipótese; as mulheres nunca podiam contar com eles. Quando menos esperavam, depois de uma longa viagem de meses ou até anos sem aparecerem por casa, lá vinham eles com um orfãozito que tinham encontrado pelo caminho ...
E é certo que, embora ainda fossem parentes, no quarto grau de afinidade, a Igreja não se iria opor a tal união. Sim, talvez fosse boa ideia propor-lhe casamento. Havia de falar-lhe e esperar pela reacção. Assim conjecturou Pedro Pires naquele distante dia, daquele distante "anno ut supra".

2.5.05

Salto Quântico


Cassiopeia

"O acto de observar define o mundo: não existe qualquer realidade profunda, vivemos num mundo fantasma onde nada existe até que se meça."

Super Interessante - Maio 2005

25.4.05

A Casa da Madrinha



Cortinados velhos murmuram
entre ar parado
que a morte levou a vida

D.L.Carvalho

Não me lembro em que dia é que foi, só sei é que não foi num fim de semana. Há já algum tempo que prometera a mim mesma desafiar de uma vez por todas os fantasmas e entrar naquela casa. Era de manhã e fazia sol, um dia lindo de sol, talvez por isso me sentisse com mais coragem para entrar lá dentro, certa de que jamais o tentaria num dia nublado, e nem em sonhos ousaria fazê-lo à noite. Então fui. Subi as escadinhas e entrei confiante. Cruzei o alpendre e entrei na primeira salinha, uma espécie de hall de entrada que noutras épocas tinha servido de quarto quando a casa ficara demasiado pequena para tantos filhos. Em tempos, tinha havido ali uma grande laje a separar as duas divisões, mas acabaram por retirá-la para substituir a pedra da lareira, que já se encontrava muito gasta devido aos séculos de uso. A cada passo que dava, o soalho de madeira podre rangia, mas eu sabia que era apenas por ser velho ... Ali tinha vivido a Madrinha. Estranha personagem esta de que toda a gente falava. Nunca se tinha casado, mas cuidara dos sobrinhos como se fosse a mãe deles. É verdade, eles a viam assim, muito mais do que uma simples tia solteirona. Tinha sido boa em vida, muito religiosa, como todos da família, mas sempre dissera que dali nunca tinha saído um padre. Realmente, era estranho pensar nisso. Os dois seminaristas de que ainda havia memória, não tinham chegado a concluir o curso. Um envolvera-se com uma criada e acabou por fugir de casa, o outro sofrera de uma doença degenerativa, terminando por morrer preso a uma cama, ali naquela mesma salinha. Por que será que eu tinha medo daquela casa? Será por saber que a Madrinha morreu ali também?

Alguém abrira as duas janelas da sala principal, a tal sala em que faziam reuniões quando apareciam visitas. Os mais velhos diziam que, por vezes, surgiam por lá pessoas importantes, mas eu jamais poderia confirmar essas histórias. Olhei em frente e vi as janelas abertas, as conversadeiras, e os cortinados velhos que ninguém ainda tivera coragem de retirar. No total, havia três janelas viradas para o fontanário, uma da torre, e as outras duas desta sala. Pelo caminho que existia em frente à casa, tinham percorrido peregrinos rumo a Santiago de Compostela. Sim, ao menos esta história eu podia confirmar. Vinham por ali, talvez se abastecessem de água no fontanário, e, se estivesse de noite, paravam para pernoitar, dormindo no Coberto, o quartinho do Coberto, e depois seguiam até São Pedro de Rates e de lá até Santiago de Compostela. Talvez alguns desses peregrinos fossem os tais convidados importantes que haviam estado naquela sala.

Tinha começado a soprar uma pequena brisa que fazia ondular os cortinados e, de súbito, o medo apoderou-se de mim novamente. Fechei os olhos, eu sabia que não havia nada lá dentro, e, no entanto, não conseguia estar ali mais tempo. Não suportava aquele local. Definitivamente, a Casa da Madrinha não me agradava. Havia que sair dali o mais depressa possível, mas, inexplicavelmente, não podia virar as costas àquela sala e sair de forma natural. Sentia um medo irracional de ser atacada por trás, como se alguém estivesse ali à minha espera. Dirigi-me, então, para a porta de saída, mas sempre a recuar, como um veículo em marcha atrás, tentando não fixar o olhar em nada. Era o adeus definitivo à Casa da Madrinha. Não voltaria a entrar naquele local outra vez.

22.4.05

Cântico Negro




"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.


Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou -
- Sei que não vou por aí!


Cântico Negro - José Régio

16.4.05

Mensagem


Janela com conversadeiras

“Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro”


Ode Triunfal - Álvaro de Campos


Em poucos meses de pesquisas, as improvisadas investigadoras tinham acumulado uma tal quantidade de informações que já era possível especular sobre a vida deste ou daquele antepassado, acabando por substituir por outros assuntos os eternos e sempre desagradáveis temas de conversa familiar que teimavam em vir à baila toda a vez que havia uma reunião de família, em que surgiam as inevitáveis perguntas do tipo: “Então, quando é que casam?” ou “Quando é que decidem ter filhos?”. Agora, em vez de se preocuparem com a vida sentimental da geração mais nova, o clã mais velho queria saber novidades daquele tal antepassado que tinha sido encontrado. Era com gosto que as duas pesquisadoras desbobinavam os conhecimentos adquiridos, ao mesmo tempo que podiam observar a expressão de alívio que exibiam os solteiros e descasados da família por, momentaneamente, não se sentirem objecto dos olhares de desaprovação dos mais velhos e das bocas foleiras do costume.

As duas mulheres tinham decidido voltar ao Porto para completar uma lacuna de cem anos que existia na sua genealogia. Aparentemente, estava a faltar um livro, e nem no arquivo distrital, nem na conservatória sabiam do seu paradeiro. Poderia ter-se dado o caso de o padre não o ter entregue à conservatória ou o livro ter sucumbido num incêndio ou, pura e simplesmente, ter sido deitado ao lixo! Não, não queriam acreditar, por um momento sequer, nas hipóteses mais catastróficas. Sabiam que havia casos de completo desmazelo em relação a documentos antigos encontrados em casas particulares, que eram, sem mais nem menos, queimados ou deitados fora. Mas a Igreja, nesse aspecto, sempre fora muito zelosa dos seus arquivos e se não tivesse ocorrido nenhum incêndio ou inundação, certamente o livro ainda estaria nas mãos dos padres. Graças a Deus, as tropas de Napoleão nunca tinham chegado a esta zona. Sabiam de pessoas que não podiam continuar a sua árvore genealógica para além do século XIX, em virtude dos livros terem sido completamente destruídos pelas tropas napoleónicas durante os saques ocorridos às igrejas e às casas. Milhares de pessoas impedidas de conhecerem a sua história familiar por causa de acontecimentos nefastos do passado. Mas esse, certamente, não era o caso das duas pesquisadoras. Não seria Napoleão que as iria impedir de prosseguirem na sua busca. Haviam de encontrar o livro perdido, nem que, para isso, tivessem de percorrer o país inteiro.

9.4.05

Lucretia my Reflection


Ticiano
Cupido com a Roda da Fortuna c.1520


I hear the roar of a big machine
Two worlds and in between
Hot metal and methedrine
I hear empire down
I hear empire down

I hear the roar of a big machine
Two worlds and in between
Love lost, fire at will
Dum-dum bullets and shoot to kill, I hear
Dive, bombers, and
Empire down
Empire down

I hear the sons of the city and dispossessed
Get down, get undressed
Get pretty but you and me,
We got the kingdom, we got the key
We got the empire, now as then,
We don’t doubt, we don’t take direction,
Lucretia, my reflection, dance the ghost with me

We look hard
We look through
We look hard to see for real
Such things I hear, they don’t make sense
I don’t see much evidence
I don’t feel. I don’t feel. I don’t feel

A long train held up by page on page
A hard reign held up by rage
Once a railroad
Now it’s done...

I hear the roar of a big machine
Two worlds and in between
Hot metal and methedrine
I hear empire down...

We got the empire, now as then,
We don’t doubt, we don’t take reflection,
Lucretia, my direction, dance the ghost with me...

The Sisters of Mercy

4.4.05

Totus tuus



Há muito tempo que perdi a capacidade de admirar alguém, mas do restrito grupo de pessoas por quem eu ainda sentia alguma admiração, João Paulo II fazia parte desse grupo. Sobretudo pelo difícil caminho que ele escolheu nesta vida. Sim, difícil, porque eu não compartilho daquela ideia de que o Vaticano é apenas um local de luxo e de riqueza totalmente alheio à realidade dos países. Nem vejo no simbolismo e riqueza que rodeiam o Papa um atentado contra a extrema pobreza que se vive neste planeta. Habitamos num mundo muito mais complexo do que imaginamos e se há uma estratégia que me parece lógica, essa estratégia é a do Vaticano.
Que o próximo Papa saiba encarar os desafios deste mundo decadente com força e espírito de luta, porque ele bem vai precisar. A João Paulo II nunca faltou a fé e, certamente, ele foi recompensado por isso ...

30.3.05

O Verão Quente



Se havia um local naquela propriedade que as crianças podiam chamar de seu, então esse local era seguramente o Pomar. Havia uma quantidade impressionante de árvores, quase todas muito antigas e carregadas de frutos, fazendo lembrar o Paraíso há muito tempo perdido. Na mente das crianças, as árvores tinham-se transformado em habitações imaginárias, onde cada galho representava uma parte da casa. Havíamos escolhido uma macieira como quartel general das nossas brincadeiras e cada criança tinha direito a um galho só para ela. Ai daquele que se atrevesse a usurpar o pedaço de tronco que lhe tinha sido destinado! Mesmo ao lado do pomar, estava a Eira de Granito, cuja escada de pedra testemunhava as milhares de pessoas que tinham subido aqueles degraus ao longo dos séculos e cujas pisadas o Tempo fizera questão de gravar nas covas profundas da pedra. Naquela eira, os lavradores colocavam os cereais para secar, ao mesmo tempo que guardavam o feno no Coberto. O Coberto era uma construção em granito, de dois andares, com duas grandes janelas no segundo andar, que se abriam para fora. O feno, esse, ficava no primeiro andar. O segundo andar era todo em madeira, ao qual se acedia por uma escada. Aí se guardavam as batatas, alguns produtos para tratamento da lavoura e alfaias agrícolas. Nessa altura, a escada de madeira já se encontrava muito deteriorada e eu evitava de subir por ela, pressentindo já o perigo daquela estrutura. Então, um dia, uma criança subiria por ali e cairia desamparada no chão de pedra, quando o degrau se partisse, e ficaria gravemente ferida.

Como era Verão, havia um monte de feno no Coberto, no qual costumávamos esconder-nos a fim de pregarmos sustos aos desavisados. Os mais audazes enfiavam-se mesmo completamente dentro do feno, tapando os narizes e sustendo a respiração. Nem sempre corria bem, principalmente se calhasse de alguém tossir. E dentro do Coberto, mais uma divisão, um pequeno quarto, com uma janelinha aos quadrados. E dentro do quarto, um tear de madeira, ainda com as linhas, muito antigo, aliás, tudo aqui era antigo ... Notava-se que o tear também já não era usado há muito tempo. Em vez dele, eram as aranhas que, descansadamente, teciam as grandes teias.

Alguém colocara um fio para estender a roupa na eira. Não havia melhor lugar do que aquele para secar roupas no verão. Bruno trouxera consigo um brinquedo de plástico. Era um arco e flecha que ganhara do padrinho e com o qual tentava acertar o fio de pendurar roupa que se estendia pela eira. Como não acertasse uma única vez, desafiou-me para o fazer. Os outros rapazes bem queriam ser eles a tentar a proeza, mas coube-me a mim a honra de tal disputa. Atirei com a flecha e acertei na primeira tentativa. A seguir outra, igualmente com sucesso. O rapaz olhou para mim com espanto e eu, serenamente, disse-lhe: "Sabes, na minha escola, treinamos tiro ao alvo". Assim era eu nesses tempos, sempre a inventar, sempre a imaginar um mundo completamente diferente daquele em que vivia.

24.3.05

Páscoa

21.3.05

O suicida




Cinco Andares
Quatro Cervejas
Três Pipocas
Dois Whiskeys
Uma Desilusão
Compressor de Vida.


D.L. Carvalho

Acabara de acordar do sono, ou pelo menos, assim lhe tinha parecido. Olhou em frente, aos pés da cama, e lá estava a figura a contemplá-lo. Cumprimentou-o, sem ainda pensar na estranheza de tal presença, e perguntou-lhe como era "lá em cima". A figura respondeu-lhe que era bom, mas faltava cerveja ... Tinha-se atirado da varanda do quinto andar de um edifício há menos de uma semana. Mais tarde, alguém lhe dedicaria uns versos ...

16.3.05

A Floresta



Come closer and see
See into the trees
Find the girl
If you can
Come closer and see
See into the dark
Just follow your eyes
Just follow your eyes
I hear her voice
Calling my name
The sound is deep
In the dark
I hear her voice
And start to run
Into the trees
Into the trees

Into the trees

Suddenly I stop
But I know it's too late
I'm lost in a forest
All alone
The girl was never there
It's always the same
I'm running towards nothing
Again and again and again and again

The Cure

Muito antes de compreender a letra desta música, já me tinha identificado com a sua melodia. Ainda me recordo da primeira vez que a gravei e dei a ouvir à minha irmã. Com cara de desagrado, ela virou-se para mim e disse-me: "Que canção mais mórbida"!
Desde que me conheço por gente, que sempre fui assim, meio virada para a realidade, meio virada para o surreal. Talvez isso explique o porquê de captar as subtis manipulações do mundo em que vivemos ...

12.3.05

Pedro de Rapijães


Cena da Guerra dos Emboabas num ex-voto do séc. XVIII
Autor Desconhecido

A vida de Pedro mudara completamente depois da morte de Isabel. Nos anos que se seguiram à perda da mãe, o jovem arcara com o sustento dos irmãos, tomando todas as decisões necessárias, de forma a garantir-lhes o futuro. Tal responsabilidade impediu-o de se casar mais cedo, tendo sido, por isso, o último dos irmãos a contrair matrimónio. Casaria com Maria de Azevedo, cujo acordo já havia sido formalizado pelos pais dos jovens, pouco antes da morte de Isabel. Porém alguns anos haveriam ainda de correr antes de Pedro decidir finalmente dar o passo definitivo. Com efeito, onze anos após a morte da mãe, todos os irmãos, exceptuando João, encontravam-se casados e com descendência. Pedro contava já com quatro filhos. O último tinha-lhe nascido há poucos dias. Dera-lhe o nome de Teodósio, em homenagem a D. Teodósio, 7º Duque de Bragança, cujo filho, D. Duarte, fora Senhor de Vila do Conde. A fidelidade à Casa de Bragança tinha por base um motivo muito concreto: as terras de que usufruíam pertenciam à Casa Real, a quem tinham de pagar anualmente os foros. E estes eram rigorosamente cumpridos, todos os anos, por altura do São Miguel. Não era de admirar, portanto, que a família resolvesse homenagear os seus senhorios, colocando os nomes deles nos seus próprios filhos.

Entretanto, havia já algum tempo que Pedro não recebia qualquer notícia do João. Desde o dia em que embarcara para o Brasil, tinha-lhe sido enviada apenas uma carta. Nela, o irmão relatava que havia rebentado uma guerra no interior do Brasil, na região das Minas, e ele fora destacado para a zona. O irmão contara-lhe na carta que os nativos chamavam-lhes desdenhosamente de "emboabas", pelo que a guerra acabaria por ser conhecida por esse nome. Mas nada mais lhe fora adiantado. Receava pela vida do irmão, perdido no meio de uma selva onde os perigos espreitavam a cada canto, quando não eram as doenças tropicais que os matavam. Se Deus quiser, João havia de vencer essa batalha, mas intimamente sabia que, o que quer que acontecesse, nunca mais voltaria a ver o irmão.

23.2.05

Mensagem



A pesquisa tinha chegado a um beco sem saída. Não era possível avançar sem tentar conhecer mais pormenores acerca dos antepassados já descobertos e esses pormenores estavam enterrados algures, nalgum livro abandonado, num qualquer arquivo de província. As raparigas tinham decidido interromper a sua viagem no tempo. Era Natal e, embora estivessem de férias, não podiam dedicar-se tanto quanto queriam a essas actividades. Na verdade, as pesquisas davam muito trabalho e tempo era algo de que ambas sentiam muita falta. Ainda para mais, nos arquivos, nada estava organizado como elas gostariam que estivesse. A caligrafia dos documentos originais era, regra geral, péssima e, em muitos casos, impossível de ler. Luísa brincava dizendo que o padre devia ter bebido um bocado naquele dia, porque o livro tinha marcas de líquido entornado. Pior era quando os livros exibiam traços de fogo, de alguma fagulha que se desprendeu da lareira. Aquilo deixava-as profundamente tristes. Realmente, havia pessoas que eram muito descuidadas. E isso ficava-se a saber, mesmo trezentos anos depois ...
Porém, em vez de desanimarem, estas constatações apenas aguçavam ainda mais a curiosidade das primas. Esperavam ter elementos suficientes que as pudessem transportar ainda mais longe no tempo. Luísa já tinha experimentado essa sensação. Tivera em mãos um livro do século XVI. Como era difícil compreender aquela linguagem. Esperava que um golpe de sorte a iluminasse, de forma a compreender aquelas letras arcaicas, como naquela cena da Bíblia, em que, abençoados pelo Espírito Santo, os apóstolos começaram a falar línguas estrangeiras. Por mais obstáculos que se interpusessem à sua frente, elas não iriam desistir. Tinham sido contaminadas pelo vírus do Conhecimento, e agora que, finalmente, tinham encontrado o fio de Ariadne, nada as impediria de entrar no complexo labirinto do Tempo.

18.2.05

A Presença



Exorcismo dos Demónios
1297-99
Frescos de Giotto
Basílica de São Francisco de Assis


O dia fora cansativo. Deitara-se já tarde da noite no sofá da sala, por cima do braço direito, em péssima posição para dormir. Ainda assim, adormeceu depressa. Não se lembra em que altura do sono foi, mas sentiu a Presença a querer entrar no corpo, pelas costas. Não a via, mas sentia-a. Uma onda de terror invadiu-a e depressa entrou em pânico. Começou a rezar. O pesadelo terminou.

10.2.05

O Verão Quente




Os dias corriam depressa no verão quente de agosto de 1976. Quente porque, por onde quer que se andasse, os incêndios marcavam a paisagem, deixando nas crianças um sentimento inexorável de terror perante a visão das chamas do inferno, que a tudo consumiam impiedosamente. O som dos sinos a tocar a rebate completavam o cenário, lembrando uma sinfonia mórbida que imediatamente ficou associada à morte. Aliás, a morte de alguém fazia-se anunciar pelo mesmo repique dos sinos, pelo menos assim pareceu à mente das crianças. E mal se ouvia aquele repicar, as pessoas corriam com baldes e enxadas para o local do incêndio, na tentativa de evitar que as chamas fizessem ainda mais danos às suas propriedades. No entanto, em Rapijães, apesar das pequenas tragédias próprias da época, havia felicidade no ar. Depois de tantos anos de separação, todos os irmãos estavam reunidos novamente e aproveitavam para matarem saudades uns dos outros. Eu tinha ficado a conhecer tantos tios e primos que, por vezes, até perdia a conta. Quantos seriam no total? Uns quinze primos? Talvez mais ... Tinha que parar momentaneamente para ordenar os nomes de todas aquelas pessoas na cabeça. Como agosto era o mês dos emigrantes, toda a gente marcava os casamentos para aquela altura. Também perdera a conta das comunhões e aniversários a que fui convidada. Não havia dia em que não houvesse uma festa. Num dia, ia-se à praia. Noutro, ia-se à feira, como a de Barcelos, sempre com muita música e ranchos folclóricos. Algumas músicas deixavam-me embaraçada. Precisavam de dizer tantos palavrões? Tínhamos sido educados para não dizermos palavrões, por isso ficava indignada ao ouvir músicas tão brejeiras. Uma das minhas tias estava para casar. Iam fazer a festa em casa e depois os noivos emigrariam para França. Mais uma filha que se ia embora, deixando a minha avó cada vez mais sozinha. Em casa foi uma correria total até ao dia do casamento, com as mulheres a fazerem os bolos para a festa, ao som da música dos Abba. Enquanto as mulheres preparavam os bolos, eu ficava a ouvir as músicas. Gostei imediatamente da banda. Ficaria para sempre associada a esse período da infância.

Entretanto, nos poucos dias em que não havia festa para ir, ou não podia ir à praia, aproveitei para explorar as redondezas. Aquela casa era mesmo o meu castelo. Um dia entrei na adega para buscar vinho e espantei-me com a fechadura. Era enorme! Perguntei-me como podiam fazer chaves daquele tamanho! Não fazia ideia de quão antigo aquele objecto era. Entrei lá para dentro, o chão em terra batida, com tonéis encostados à parede e uma lampadazinha no tecto para iluminar o local. Fazia muito frio lá dentro. Virei-me para o meu tio e disse-lhe "Parece a adega do Sargento Garcia". Ele não percebeu, não conhecia o Zorro. Reparei que também ali havia muitas teias de aranha e fiquei preocupada. O meu tio riu-se perante o meu medo. "Elas é que têm medo de nós", dizia ele. Mesmo assim, fiquei alerta. Lembrava-me das aulas de Ciências e do veneno da Viúva Negra. "Será que as Viúvas Negras desenvolviam-se nestes ambientes? Como podiam ficar tão descansados em relação às aranhas?".
Saímos da adega em direcção à casa. Ao passar em frente à Casa da Madrinha, olhei com receio. Um dia havia de ultrapassar o medo de lá entrar ...

27.1.05

Pedro de Rapijães


Natureza Morta com Doces e Barros
Josefa de Óbidos - 1676


Sozinho no mundo, assim estava Pedro em finais de 1691. Com apenas vinte anos, órfão de pai, mãe, padrasto e avós, o jovem ficara com a pesada tarefa de tratar do futuro dos irmãos mais jovens e ainda gerir a grande propriedade que lhe coubera em herança. A primeira atitude que tomou foi de emendar o nome. A partir de agora assinaria como "Pedro Pires de Sá". Não lhe tinham dito sempre que descendia dos Sás de Vila do Conde? Pois então iria assumir o nome de família que lhe vinha por parte dos bisavós paternos. Agora que pensava nisso, interrogava-se sobre a estranha morte do pai. Morrera de repente, devido a um acidente de cavalo. Um vizinho tinha-o encontrado sem vida na estrada, aparentemente em consequência da queda que sofrera, e veio dar a notícia. Nunca conhecera o pai e tão pouco os avós maternos. Parecia que a mãe esquivava-se de falar neles. Mas sabia que o avô António era homem do mar. Talvez fosse essa a razão por que Isabel raramente falasse nele. Era filha de um casamento já tardio, em que a ausência paterna era sentida durante largos meses. E isso levou a que alimentasse algum ressentimento, mas nunca viria a saber com certeza, nunca tivera muito à vontade com a mãe.
O que sabia agora era que teria de tratar do futuro dos irmãos, arranjando-lhes bons casamentos e a tal carreira militar para o João. Sim, o futuro do João já tinha sido decidido. Seria capitão e partiria para o Brasil. Uma viagem só de ida, da qual nunca mais regressaria ...

17.1.05

Mensagem

À procura de entendimento e de respostas às questões mais íntimas do ser, Luísa encontrava em Helena o apoio que necessitava para prosseguir a sua busca, algo que não veria em mais ninguém da família. Sentia que Helena, de certa forma, a compreendia, e que também ela procurava o mesmo. Espantosamente, porém, Luísa nunca pensara em Helena como fiel aliada, e por vezes até achava graça ao entusiasmo da prima, que muitas vezes ultrapassava o seu próprio entusiasmo. Era Helena que se disponibilizava sempre a visitar aquele arquivo poeirento e em péssimas condições, praticamente esquecido pelas autoridades locais, como aconteceu daquela vez que foram a Barcelos. Saíram de lá com dores de cabeça, porque os livros ainda não tinham conhecido qualquer tipo de tratamento e o pó que levantavam deixava qualquer um mal disposto. Se nada fosse feito, qualquer dia não haveria mais livros para consultar naquele arquivo ... Mas tudo isto compensava quando traziam para casa mais um dado precioso que as ajudaria a compor o puzzle que é uma árvore genealógica. E quanto mais avançavam nessa jornada, mais Luísa se apercebia de que a sua intuição estivera sempre correcta. E isto deixava-a particularmente feliz porque intimamente sabia que por mais que lhe dissessem o contrário, por mais que lhe ensinassem o que devia pensar e em que devia acreditar, só a ela caberia desvendar a Verdade. E a verdade estava nos seus sonhos de criança, naquilo em que um dia acreditou e que, misteriosamente, pareciam querer destruir agora. Lembrava-se da princesa que se vestia de homem para proteger o reino. Aquilo comovia-a tanto que chegava a chorar em determinados episódios. A Princesa Safiri e a sua cruzada, as Cruzadas, sempre as Cruzadas a atravessarem-se misteriosamente na sua vida ...

13.1.05

O Crescente



Na tentativa de encontrar uma lógica para esta vida, resolvi um dia procurar na infância as raízes daquilo que, mais tarde, viria a tornar-se importante para mim. E se não tivessem ocorrido determinados factos que ainda hoje tento encaixar na minha lógica, talvez eu nunca me tivesse prestado a iniciar este blog. Isto porque, até há poucos anos, as minhas memórias estavam enterradas e raramente fazia uso delas. Até que, um dia, tornou-se importante eu lembrar-me ...
E assim foi com a história do Crescente. Porque por mais que eu queira dar a impressão de que escolhi um tema tomando por base apenas a imaginação, a verdade é que há sempre algo de real por detrás das escolhas que fazemos ...

Estava com o meu pai sentada no banco da frente de uma Volkswagen Kombi, ainda não tinha completado dois anos de idade, quando, de repente, há uma travagem funda e eu caio desamparada para a frente (nessa época, não havia tanta preocupação com a segurança das crianças). A minha testa acabou por embater contra o botão metálico do rádio do carro, fazendo uma ferida que me obrigaria a levar alguns pontos no hospital. Ferida curada, menina de volta a casa. No entanto, já nessa altura, a menina tinha os seus altos e baixos, e num acesso de teimosia, acabou por, novamente, bater a cabeça, desta vez contra a escada, porque não queria subir para a casa. Ferida de novo aberta, nova ida ao hospital. O enfermeiro diz então que não era possível dar mais pontos na ferida, teria que cicatrizar aberta. E assim surgiu a cicatriz em forma de crescente, que durante muito tempo tentei esconder por detrás de uma franja de cabelo ...

***



Odeio dias assim ...

6.1.05

O Verão Quente

A forte impressão que Bruno me deixara depois daquele primeiro encontro iria reforçar-se nas ocasiões seguintes em que nos encontrámos. Aliás, tal impressão era mútua, já que Bruno parecia dar mais atenção a mim do que aos outros primos que entretanto tinham chegado do estrangeiro, onde seus pais se encontravam emigrados, para passarem férias em casa da avó. Não havia brincadeira em que ele não fizesse questão da minha presença. E de tal forma era assim que, mesmo quando os outros rapazes rejeitavam a participação das meninas, Bruno insistia na minha presença, ainda que eu não estivesse muito virada para tal, o que frequentemente acontecia. E já nessa altura eu era mazinha, quando percebi que o deixava desiludido toda a vez que dizia não a um pedido seu e, mesmo assim, não voltava atrás.
Entretanto, Helena arranjara-me uns alfinetes para colocar no peito. Tinham passado uns homens pela aldeia a fazer campanha política para umas eleições. Olhei para os alfinetes que Helena me dera e achei-os verdadeiramente bonitos. Num deles podia ver-se o desenho de um lavrador a segurar uma enxada na mão e a sigla APU. Helena recomendou-me que o guardasse e escondesse, pois não era seguro estar a mostrar aquilo às pessoas. Os pais tinham-lhe advertido que aqueles eram homens maus. Achei fantástica a ideia de estar a esconder algo que os adultos proibiam de usar, até porque, gostara realmente do desenho. Guardei-o dentro da minha bolsa como se fosse uma relíquia. Anos mais tarde, fui à procura de tal peça, mas descobri que a perdera irremediavelmente.

3.1.05

A Lua (parte II)

Os quatro rapazes tratavam da Lua com óleo, limpavam a mecha e recebiam a sua moeda semanal. No entanto, envelheceram e quando um deles adoeceu e se apercebeu que a morte estava próxima, ordenou que o quarto da Lua que lhe pertencia fosse levado com ele para a sepultura. Quando morreu, o prefeito trepou à árvore e, com a tesoura da poda, cortou um quarto da Lua que meteu no caixão. A luz da Lua diminuiu, mas não muito. Quando morreu o segundo, foi-lhe dado o segundo quarto e a luz mingou. Mais fraca ficou ainda quando morreu o terceiro, que também levou o seu quarto e, quando o quarto homem foi sepultado, instalou-se de novo a velha escuridão. Sempre que as pessoas saíam à noite sem lanterna, batiam com as cabeças umas nas outras.

Porém, assim que os quartos da Lua se juntaram no inferno, os mortos, habituados à escuridão, agitaram-se e acordaram do seu sono. Ficaram espantados por poderem ver de novo: a luz da Lua chegava-lhes bem, pois os seus olhos estavam tão fracos que não teriam podido suportar a luz do Sol. Ergueram-se, alegraram-se e retomaram os seus hábitos de vida. Alguns deles dedicaram-se ao jogo e à dança, outros foram para as tabernas onde pediram vinho, embriagaram-se, vociferaram e lutaram e, por fim, pegaram em cacetes e bateram uns nos outros. O barulho era cada vez maior até que, por fim, chegou ao céu.

São Pedro, que guarda as portas do céu, calculou que o inferno se tinha revoltado e chamou as hostes celestes, que lutavam contra o maligno, porque este e os seus associados pretendiam assolar a morada dos abençoados. Como, porém, elas não vinham, São Pedro montou no seu cavalo, atravessou as portas do céu e foi ao inferno. Aí, sossegou os mortos, fê-los voltar de novo à sepultura e levou com ele a Lua, pendurando-a no céu.

Jacob e Wilhelm Grimm / A Lua

A Lua




Em tempos que já lá vão, havia uma terra onde a noite era sempre escura e o céu estendia-se sobre ela como um lenço negro, pois ali a Lua nunca subia e nenhuma estrela piscava na escuridão. Na altura da criação do mundo, a luz da noite era suficiente. Uma vez, saíram desta terra em peregrinação quatro rapazes e chegaram a um outro reino onde, quando à noite o Sol desaparecia atrás dos montes, havia uma esfera brilhante pendurada num carvalho, que deitava uma luz suave em todas as direcções. Devido a ela, era possível ver e distinguir tudo muito bem, embora não fosse uma luz tão forte como a do Sol. Os rapazes pararam e perguntaram a um lavrador, que passava por ali com o seu carro, que luz era aquela. "Aquilo é a Lua", respondeu ele, "o nosso prefeito comprou-a por três moedas e pendurou-a no carvalho. Tem de lhe deitar óleo todos os dias e mantê-la limpa, para que ela não deixe de brilhar. Por isso pagamos-lhe uma moeda por semana."

Assim que o lavrador partiu, disse um deles: "Esta lanterna fazia-nos jeito, também lá temos um carvalho tão alto como este, onde podemos pendurar. Que grande alegria deixar de tropeçar na escuridão!" "Sabem que mais?", disse o segundo, precisamos de arranjar um carro e um cavalo e levar a Lua embora. As pessoas daqui bem podem comprar uma outra." "Eu trepo com muita facilidade", disse o terceiro, "trago-a já para baixo!" O quarto trouxe um carro e um cavalo e o terceiro trepou pela árvore acima, fez um buraco na Lua, passou-lhe um fio e fê-la descer. Assim que a Lua brilhante ficou dentro do carro, deitaram-lhe um lenço por cima, para que ninguém se apercebesse do roubo. Levaram-na sem problemas para a sua terra e penduraram-na num alto carvalho. Velhos e novos alegraram-se, quando a nova lanterna começou a estender a sua luz sobre os campos e os quartos e salas se encheram dela. Os anões saíram dos seus buracos nas rochas e os pequenos elfos, com os seus casacos vermelhos, faziam rodas nos prados.