28.10.04

Pedro

Pedro nunca viria a sentir o peso da orfandade em criança. A rapidez com que a mãe tratara de dar outro pai aos seus dois filhos evitou que o menino alguma vez se sentisse marginalizado. Passariam muitos anos até chegar o dia em que iria questionar as suas verdadeiras origens. Durante aqueles primeiros anos de vida, pudera acompanhar o nascimento dos seus novos irmãos e a morte do irmão mais velho, Manoel, a poucos dias de ter completado 8 anos. Na altura, não dera muita importância à perda deste irmão, único elo de sangue em comum com o seu falecido pai. Tinha apenas 6 anos e ainda não compreendia muito bem a precariedade da vida e a certeza da morte. Diziam-lhe que o irmão tornara-se um anjo, por isso não devia ficar triste. Mas reparou que a mãe perdera subitamente o sorriso e que dera três mil reis em missas a serem rezadas pelo padre. Isabel não chorava, mas preocupava-se sinceramente com o bem estar da pequena alma no Outro Mundo. E prometera a si mesma dar o nome do filho morto ao próximo bebé masculino que tivesse. Não precisou de esperar muito tempo. Em Julho de 1678, Pedro via nascer mais um irmão, e este, definitivamente, seria mais afortunado do que o primeiro.

27.10.04

Nuvem Passageira




Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai

Não adianta escrever meu nome numa pedra
Pois essa pedra em pó vai se transformar
Você não vê que a vida corre contra o Tempo
Sou um castelo de areia à beira do mar

Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai


A lua cheia convida para um longo beijo
Mas o relógio te cobra o dia de amanhã
Estou perdido, sozinho e louco no meu leito
E a namorada analisada por sobre o divã

Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
Eu sou como um cristal bonito
Que se quebra quando cai


Por isso agora o que eu quero é dançar na chuva
Não quero nem saber de me fazer ou me matar
Eu vou deixar um dia a vida e a minha energia
Sou um castelo de areia à beira do mar

Hermes de Aquino

25.10.04

O Verão Quente

Naquele verão quente de 1976, quatro crianças iam finalmente conhecer os seus avós. Foram precisos vários anos até que os seus pais juntassem dinheiro suficiente para fazer uma viagem de volta ao país de onde haviam partido há mais de uma década. Para as crianças, o sonho de conhecer a avó ainda viva e somente vista por fotografias era quase tão grande como o desejo de conhecer todos os primos e primas da mesma idade, e de que só ouviam falar por meio de cartas. A avó desconhecida era já viúva quando pela primeira vez viu os seus três netos pródigos mais velhos a correrem para ela e a gritarem "Avó", como se já a conhecessem há muitos anos ...
Velha, enrugada, com a pele meio tostada pelo sol, de andar horas e horas pelos campos, e as costas curvadas de tanto olhar para o chão "a ver se topava uma moeda", D. Clarinda era a única que ainda mantinha viva a velha casa de Rapijães. Costumava fazer questão de juntar na antiga casa todos os seus filhos emigrados, altura em que os seus olhos azuis brilhavam de alegria, por ver de novo todos os filhos reunidos. Mas aquele ano de 1976 era especial. Pela primeira vez em muitos anos, veria novamente a sua filha e os netos que não conhecia. Deus tinha sido misericordioso e atendera-lhe as preces. Ainda poderia ver a filha e os netos antes de morrer.

22.10.04

Mensagem

Naquele dia quente de verão em que finalmente decidimos avançar com a nossa investigação, pudemos, pela primeira vez, comprovar que as histórias de que ouvíramos falar na nossa infância tinham o seu fundo de verdade. Afinal, para alguma coisa tinham servido aquelas conversas que mantivéramos com os idosos da família, perguntando sobre mortos e vivos, ouvindo falar dos usos, tradições e até mesmo dos mexericos, que compilámos, juntamente com as fotografias que ainda nos restavam de um ou outro parente. Tudo isto foi feito com muita pressa, pois havia a consciência de que faltava pouco tempo para que todo aquele manancial de informação viva que ainda tínhamos junto de nós se perdesse para sempre. Mas nada se comparava àquela primeira visão do nome de Pedro Pires, o nosso avô esquecido, trazido à luz do dia através das brumas dos tempos.

- Estás a ver? - disse eu meio a brincar - é o nosso avô a querer mandar uma mensagem para as suas netinhas do século XXI ...

- Não brinques com isso, que eu acredito nessas coisas!

Mas não estava a brincar. Naquele preciso momento, algo me dizia que tinha finalmente encontrado o meu objectivo e na minha cabeça começava a delinear-se algo muito maior do que inicialmente tinha imaginado.

20.10.04

Pedro de R.

O rapaz nasceu com saúde. Sua mãe voltara a casar-se imediatamente depois de ter enviuvado, ainda Pedro não tinha nascido. Na verdade, o casamento com João Gonçalves chegou a ser criticado em surdina na aldeia, dada a rapidez com que se efectuou. Diziam as más línguas que Isabel já andava de caso com o homem de Arcos, que visitava muitas vezes a família, quando o seu marido ainda era vivo. Com efeito, ainda não completara quatro meses de viuvez e Isabel já se estava a casar outra vez. E parecia que não lamentava muito a morte do primeiro esposo. Dera-lhe um funeral de pompa e circunstância, com acompanhamento de dez padres e ofício de corpo presente, além de ofertas em dinheiro e géneros à Igreja. E o padre aceitara tudo aquilo de muito bom grado: um carneiro, um cesto de pão e vinho, uma rasa de trigo, uma rasa de centeio e três rasas de milho. E como eram bem vindas essas ofertas. Compensavam os dias em que realizava ofícios e nada recebia, por se tratar de gente pobre.

O Verão Quente

No últimos tempos, a casa tinha-se degradado ainda mais. Há muitos anos que ninguém lhe fazia obras e, a cada inverno que passava, o telhado parecia que não ia resistir às intempéries. Mas naquele verão quente de 1976, a casa finalmente iria receber hóspedes. Não havia espaço para albergar cinco pessoas na moradia nova construída mesmo ao lado. A solução foi tentar acomodá-las no grande quarto virado para o fontanário. Diziam que era a "torre velha", embora ninguém soubesse explicar o sentido do nome. Mal sabia aquela gente que a casa tinha sido, em tempos, muitos séculos antes de se tornar uma ruína, uma Casa Torre. E daquele quarto se podia observar toda a propriedade até onde o olhar alcança, e avistar ao fundo, bem ao fundo, no horizonte, o traiçoeiro mar da Póvoa de Varzim.

E foi assim que, naquele distante verão, instalaram-se naquele quarto, um adulto e três crianças. Era a última vez que a casa iria ser habitada por pessoas de carne e osso antes de ser entregue definitivamente aos fantasmas ...

18.10.04

O Baptismo

Pedro nasceu num dia quente de Julho, em sua casa, naquele quarto virado para o fontanário. Seus pais trataram logo de lhe fazer o baptismo, dado que naquele tempo, a mortalidade infantil era uma realidade do dia a dia. Por isso mesmo, os pais nunca se apegavam muito aos filhos. Quanto maior a distância, menor a hipótese de virem a sofrer com a sua morte. E a morte rondava aquela vizinhança há já bastante tempo. No espaço de uma semana, Domingos da Rocha perdera os seus cinco filhos, o mais velho com quinze e o mais novo com quatro anos, vítimas de doença. Não havia tempo a perder. Comunicava-se ao padre e este marcava logo o dia do baptismo num dos três dias da semana que reservava para tais eventos. E assim, Pedro foi baptizado, com os santos óleos, numa cerimónia simples, na Igreja que um dia albergaria também o seu sepulcro. Deram-lhe o nome de Pedro Pires, em homenagem ao seu pai. O menino nascera com um estigma. Já era órfão quando nasceu ...

16.10.04

A Casa de R.

No lado oposto ao quarto, encontrava-se a cozinha. Estava bastante escura, devido a tantos séculos de fumos. Num dos lados da parede, no sítio da grande chaminé, estava o forno de cozer o pão, que de vez em quando ainda era utilizado. Aliás, de toda a casa, só a cozinha ainda era usada. O móvel onde se guardava o pão a fermentar ainda lá se encontrava. E o pão era bom e cheiroso. Só o receei de comer quando descobri que, para tapar o forno, usava-se bosta de vaca ...

8.10.04

Guarda-me uma prece

Foi bom ter começado a tocar o "Save a Prayer", do Duran Duran, na rádio. Acho que foi a primeira melodia de que realmente gostei. Aliás, eu gostava tanto da melodia que até sofria. Aquilo tocava-me a alma. Mas agora estou, como direi, estranhamente curada ...

A Casa de

Em frente à grande sala, e subindo por um degrau de pedra acedia-se ao quarto da casa. Era um quarto grande, velho, com uma janela - e as suas inevitáveis conversadeiras - que dava para o fontanário da aldeia. Poucos móveis havia. Uma cama velha e uma arca onde se guardavam roupas. O único vestígio de vida que se encontrava eram as enormes teias de aranha penduradas no tecto. Eu jamais dormiria num sítio desses. Sabe-se lá se não haveria uma tarântula? Será que há tarântulas por aqui? Não interessa, qualquer aranha que seja maior do que a cabeça de um prego já me causa arrepios ...
Contíguo ao quarto, na parte inferior do L, mas separada por uma parede, estava a "Casa da Madrinha". A "Madrinha" tinha falecido há uns vinte anos, mas eu receava entrar naquele anexo da casa. Aventurei-me uma vez a entrar pela sala e mal avistei uma máquina de costura abandonada ao fundo. Não entrei mais. Havia qualquer coisa ali que me causava ainda mais arrepios do que as aranhas do quarto de dormir ...

6.10.04

A Casa de R.

Era uma casa velha. Não! Era uma casa muito velha, já com direito a chamar-se antiga. Foi a primeira coisa que me marcou quando lá entrei pela primeira vez aos 8 anos de idade. Parecia-me uma casa de fantasmas, com a sua arquitectura em L, e as inevitáveis teias de aranha por todo o lado, que, juntamente com o soalho a ranger e a ausência de vestígios de habitação humana há largos anos, faziam-me lembrar que entrara no reino dos contos de fadas, de bruxas, castelos, príncipes e princesas encantadas. Sentia-me no papel da princesa.

Ao entrar-se pela porta principal, surgia-nos uma grande sala rectangular, com janelas de um dos lados da parede. Essas janelas não tinham "stores", mas sim grandes trancas de madeira que se fechavam por dentro, como nos castelos. Junto às janelas viam-se as conversadeiras, bancos de pedra colados à grossa parede de 40 cms. de espessura ou mais. Poucos móveis na sala. Uma grande mesa de madeira, muito velha, onde as moscas pousavam e nós tentávamos matar apenas com as mãos. Junto à mesa, algumas cadeiras de aquisição mais recente que em nada combinavam com a mesa e que demonstravam que já há muito tempo ninguém lhes passava um pano.

4.10.04

Em busca de Pedro

Eu sei, eu sei, o título faz lembrar um filme do Indiana Jones, mas é disso mesmo que se trata. É a minha busca pessoal em torno de uma pessoa que faleceu há quase 300 anos. E como se fosse um aviso do além ;) , eis senão quando o primeiro nome que surge estampado diante dos meus olhos, em letras grandes e luminosas, tal como se eu observasse um flash de néon, é o de Pedro Pires, de cuja existência eu só descobri que andava à procura naquele preciso momento em que decidi ligar a máquina de microfilmes.

E assim, começou a saga "Em busca de Pedro Pires", porque ela faz parte do meu Sonho.

No princípio

OK. Depois de devidamente testado o meu blog, eis que decido começar este meu espaço cibernético pela inevitável expressão bíblica "No princípio", pois é assim que tudo deveria começar, em vez dos enfadonhos e cada vez mais utilizados "Teste", ou "123 testando". Comecei bem este blog, mas ainda não estou familiarizada com o seu funcionamento. Aos poucos, eu chego lá. Com certeza, né?