Cortinados velhos murmuram
entre ar parado
que a morte levou a vida
D.L.Carvalho
Não me lembro em que dia é que foi, só sei é que não foi num fim de semana. Há já algum tempo que prometera a mim mesma desafiar de uma vez por todas os fantasmas e entrar naquela casa. Era de manhã e fazia sol, um dia lindo de sol, talvez por isso me sentisse com mais coragem para entrar lá dentro, certa de que jamais o tentaria num dia nublado, e nem em sonhos ousaria fazê-lo à noite. Então fui. Subi as escadinhas e entrei confiante. Cruzei o alpendre e entrei na primeira salinha, uma espécie de hall de entrada que noutras épocas tinha servido de quarto quando a casa ficara demasiado pequena para tantos filhos. Em tempos, tinha havido ali uma grande laje a separar as duas divisões, mas acabaram por retirá-la para substituir a pedra da lareira, que já se encontrava muito gasta devido aos séculos de uso. A cada passo que dava, o soalho de madeira podre rangia, mas eu sabia que era apenas por ser velho ... Ali tinha vivido a Madrinha. Estranha personagem esta de que toda a gente falava. Nunca se tinha casado, mas cuidara dos sobrinhos como se fosse a mãe deles. É verdade, eles a viam assim, muito mais do que uma simples tia solteirona. Tinha sido boa em vida, muito religiosa, como todos da família, mas sempre dissera que dali nunca tinha saído um padre. Realmente, era estranho pensar nisso. Os dois seminaristas de que ainda havia memória, não tinham chegado a concluir o curso. Um envolvera-se com uma criada e acabou por fugir de casa, o outro sofrera de uma doença degenerativa, terminando por morrer preso a uma cama, ali naquela mesma salinha. Por que será que eu tinha medo daquela casa? Será por saber que a Madrinha morreu ali também?
Alguém abrira as duas janelas da sala principal, a tal sala em que faziam reuniões quando apareciam visitas. Os mais velhos diziam que, por vezes, surgiam por lá pessoas importantes, mas eu jamais poderia confirmar essas histórias. Olhei em frente e vi as janelas abertas, as conversadeiras, e os cortinados velhos que ninguém ainda tivera coragem de retirar. No total, havia três janelas viradas para o fontanário, uma da torre, e as outras duas desta sala. Pelo caminho que existia em frente à casa, tinham percorrido peregrinos rumo a Santiago de Compostela. Sim, ao menos esta história eu podia confirmar. Vinham por ali, talvez se abastecessem de água no fontanário, e, se estivesse de noite, paravam para pernoitar, dormindo no Coberto, o quartinho do Coberto, e depois seguiam até São Pedro de Rates e de lá até Santiago de Compostela. Talvez alguns desses peregrinos fossem os tais convidados importantes que haviam estado naquela sala.
Tinha começado a soprar uma pequena brisa que fazia ondular os cortinados e, de súbito, o medo apoderou-se de mim novamente. Fechei os olhos, eu sabia que não havia nada lá dentro, e, no entanto, não conseguia estar ali mais tempo. Não suportava aquele local. Definitivamente, a Casa da Madrinha não me agradava. Havia que sair dali o mais depressa possível, mas, inexplicavelmente, não podia virar as costas àquela sala e sair de forma natural. Sentia um medo irracional de ser atacada por trás, como se alguém estivesse ali à minha espera. Dirigi-me, então, para a porta de saída, mas sempre a recuar, como um veículo em marcha atrás, tentando não fixar o olhar em nada. Era o adeus definitivo à Casa da Madrinha. Não voltaria a entrar naquele local outra vez.