O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado Fernando Pessoa - "O Andaime" O domingo amanhecera chuvoso, demonstrando má vontade contra quem quer que ousasse meter os pés na rua. Mas a decisão tinha sido tomada e nem o mau tempo seria desculpa para adiar, por mais uma vez, a ida à residência paroquial. Luísa aguardara a semana inteira por esse dia, com expectativa. Havia meses que tentava completar, em vão, aquela linha genealógica que faltava, e tudo porque o livro de baptismos não aparecia em lugar nenhum. Helena encarregara-se de indagar junto do pároco da aldeia se, porventura, tinha conhecimento de algum livro antigo na residência onde vivia. Só mesmo Helena para fazer isso. O seu curso de Direito tinha-lhe dado algum estatuto na freguesia, pelo que o padre, certamente, não se iria negar a qualquer pedido que ela lhe fizesse. E qual não foi a surpresa quando o pároco lhe disse que sim, que tinha conhecimento, não de um, mas de três! Os livros, afinal, nunca tinham saído daquela localidade e, agora que falavam nisso, foi uma coincidência elas terem aparecido precisamente naquela altura para os consultar. É que a residência paroquial tinha sofrido obras de beneficiação há bem pouco tempo e alguém encontrara aqueles livros na cave, junto a uns sacos de batata. Foi uma sorte o padre estar lá na altura. Tinha-os guardado para enviar à Diocese de Braga, mas agora que apareceram pessoas interessadas em consultá-los, teria de adiar o envio.
As duas estavam radiantes de felicidade, afinal, tudo havia sido muito mais fácil do que inicialmente tinham imaginado. Depois de tantos meses de correria, tanto tempo gasto em pesquisas, de muitos sucessos e alguns fracassos, haviam chegado, finalmente, ao livro que faltava. Era estranho pensar que estavam em posse de informações que mais ninguém possuía, nem conservatória, nem arquivo distrital. Nem mesmo os mórmons tinham tido acesso a estas informações. Como que por magia, o livro havia simplesmente desaparecido, numa cave, junto a uns sacos de batata e de repente surgia, quase duzentos anos depois, no preciso momento em que as duas mulheres procuravam por ele.
De forma simpática, o pároco indicou uma sala onde as duas podiam estudar à vontade, sem serem incomodadas. Notava-se que as obras na casa ainda não tinham terminado, faltava, pelo menos, a parte da pintura. Mas a residência estava a ficar bonita, tinham tentado manter a traça original e o interior era confortável e moderno. Entraram numa sala que dava para os fundos da casa e ficaram viradas para uma parede envidraçada de onde se podia avistar toda a aldeia.
- Foi uma boa ideia terem colocado aqui uma parede de vidro - disse Helena - Assim, aproveita-se ao máximo a luz do dia, mesmo em tempo de chuva.
O pároco entrou e colocou os três livros em cima da mesa. Nas capas, imundas dos séculos de manuseamento, podia ler-se os seguintes títulos:
Baptizados - 1789/1850, Óbitos, Testamentos ...
- Fantástico - disse Luisa - Há aqui um livro de testamentos, não podíamos ter tido melhor sorte.
Sentaram-se as duas e prepararam-se para ler os livros.
- Já viste a sorte que tivemos? Acertámos em cheio nesta linha, não é verdade? - disse Helena - Ainda não me esqueci daquela primeira vez que vimos o nome de Pedro Pires, lembras-te? Eu acredito nessas coisas ...
Luísa estranhou que Helena voltasse a tocar no assunto. Mas o certo é que também ela ficara intrigada com aquela primeira visão. Quantos assentos comportaria um microfilme? Algumas centenas, por certo. E ao rebobinar a fita, o funcionário havia de a fazer parar justamente no assento de óbito de um tal Pedro Pires de Sá, de quem não faziam a menor ideia. É certo que procuravam Sás naquela freguesia, mas não Pires de Sá. Realmente, tinha sido tudo muito estranho. Até porque, como lhes faltavam muitas informações no início, tinham decidido investigar meio ao acaso. E então escolheram seguir a linha daquele nome que lhes tinha aparecido logo à primeira vez. E agora, passados todos estes meses, que as peças se encaixavam todas direitinhas umas nas outras, aquela visão inicial voltava a colocar-se nas suas mentes. Luísa questionava-se sobre o que quereria dizer toda aquela sequência de acontecimentos. Sabia que tinha fortes motivos para pensar nisso. Não era a primeira vez que lhe parecia estar a ser guiada por uma estranha mão invisível. No seu íntimo, perguntava-se se todos aqueles acontecimentos tinham sido apenas fruto de uma série de coincidências ou se tudo aquilo não faria parte de algo maior, quem sabe, de uma mensagem ...