"Não há memória que della sahissem homens insignes,
e só que no seu monte floreceo em virtudes
Sam Felis Eremita, o primeiro das Hespanhas". Abade Sebastião Luis Pinhão - Memórias Paroquiais, 1758
- Ficas tu com um livro e eu fico com outro.
A voz de Helena acordara Luísa dos seus pensamentos. Tinha estado a pensar em como a vida por vezes dava reviravoltas surpreendentes, mas agora não era altura de perder tempo com divagações. À sua frente, estavam três livros volumosos à espera de serem decifrados. Helena escolhera o livro de baptismos, de finais do século XVIII. Não era de admirar. Escolhia sempre o livro mais recente, pois não se dava muito bem com a escrita antiga. Por mais livros que tivesse lido, por mais pergaminhos que tivesse estudado, quase sempre Helena tinha que pedir ajuda à prima para interpretar uma letra menos bem desenhada. Luísa, pelo contrário, parecia ter uma predisposição inata para decifrar aquelas expressões antigas. É compreensível. Sempre sentira um fascínio enorme pelo passado. Lembrava-se de, ainda criança, folhear enciclopédias com fotografias de escavações arqueológicas. Tinha onze anos quando viu pela primeira vez o desenho de um campo cultivado e por baixo dele uma vila romana. A ideia de que podiam existir habitações mesmo debaixo dos nossos pés era fascinante, fazia lembrar as histórias dos tesouros enterrados pelos piratas. Foi nessa altura que colocou na cabeça que havia de ser arqueóloga. Era assim que respondia quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande: arqueóloga. A maior parte das vezes, porém, tinha de explicar o significado daquela palavra. Mas a sorte, a malfadada sorte, não estava a seu favor. Não nascera num país de antigas civilizações, e menos ainda num país que se preocupasse em preservar a História. Ali tudo era demolido para construir de novo e o antigo era simplesmente enterrado e esquecido, como se houvesse uma força que ditasse que naquele país a História ainda estava por fazer.
Abriu o livro de óbitos e vasculhou por nomes conhecidos. À medida que ia folheando as páginas, apercebia-se dos momentos de crise por que passara o país, momentos de peste, momentos de incerteza. Eram épocas de grande mortalidade infantil, de expostos na roda que a Mesa da Misericórdia mandava criar em casas de agricultores, de missas por alma de pessoas ausentes há muitos anos e de quem não havia quaisquer notícias. Mas Luísa não se limitava a anotar apenas os nomes de família. Há muito tempo que aquela pesquisa tinha deixado de ser apenas uma curiosidade genealógica. Guiava-a um sentido de justiça muito próprio, era uma procura pela Verdade que, no seu íntimo, sentia ter-lhe sido ocultada. E se havia algo que detestava eram as meias-verdades. Quando sentia que estavam a utilizar uma meia-verdade para atingir um determinado objectivo, armava-se em cavaleiro e partia para atacar moinhos de vento. Sabia, no entanto, que era uma luta inglória.
Parou para anotar o assento de um nome conhecido. Era de Vitória, uma das filhas de Pedro Pires. Morrera sem filhos e pedira várias missas pelo bem de sua alma: uma a Santo André, outra a São Pedro de Rates, à Sra. da Conceição, a São Sebastião, a São José, a Santa Rita, ao Santíssimo Sacramento, ao Anjo da Guarda, ao Santo Nome de Jesus, à Sra. do Carmo. Não havia dúvidas de que havia muita fé naquele último pedido e que Vitória contava com todos estes santos e santas para enfrentar o Desconhecido.