
Os pais de Helena tinham acabado de partir rumo à Alemanha e, mais uma vez, colocaram-me perante a hipótese de dormir na Torre. A bem dizer, eu já estava à espera que tal acontecesse, mas secretamente mantivera a esperança de que alguém me pudesse oferecer outro lugar para dormir. Quem sabe o tio Luís me arranjasse um quarto em sua casa. Ele também morava ali perto, tinha construído uma moradia nos terrenos junto ao pomar, e embora eu soubesse que, dormindo por lá, teria de aguentar os eternos desafios de Bruno, sempre era melhor do que ter de dormir naquela torre velha onde as aranhas se tinham instalado tão confortavelmente nos últimos anos. Mas ninguém me ofereceu quarto. E perante a insistência da minha mãe em eu fazer companhia aos meus irmãos na Torre, perguntei-lhe se não podia dormir junto com a avó. Acedeu sem pestanejar muito. Sabia que se insistisse comigo, eu era capaz de abrir a goela num berreiro e ela não estava para aturar cenas dessas. E foi assim que me livrei, pela segunda e última vez, de lá dormir.
Naquela manhã, a seguir à partida dos pais de Helena, acordei cedo, como habitualmente fazia, e corri até à Torre para acordar os meus irmãos. Sabia que eram os últimos dias que passávamos naquela propriedade e sentia que devíamos aproveitar ao máximo todos os momentos que ainda nos restavam. Havíamos de correr por ali fora, como fizéramos nos últimos tempos, subindo as escadas da Eira, e escondedo-nos no Coberto. Era uma imagem que aquela propriedade conhecera muitíssimo bem. Há séculos que crianças tinham subido por aquelas escadas e trepado por aquelas árvores. Por vezes, aconteciam os acidentes, como daquela vez em que outras crianças, noutros tempos, se tinham espetado nos espinhos de uma figueira-da-índia. Tinha sido há quase trinta anos. E para evitar novos acidentes, o avô decidira acabar com aquela planta maldita - a figueira do inferno - como lhe costumavam chamar. Nós não éramos muito diferentes daquelas crianças de há trinta anos. Mas talvez eu, sim. Talvez já nessa altura não fosse tão ingénua como seria de esperar para a minha idade. Já nesses tempos eu andava à procura de um tesouro escondido. E naquele local tudo era tão velho, tão antigo, que havia de existir ali um tesouro enterrado.
Há trinta anos, uma criança brincava no pomar. E ao escavar a terra, encontrou uma pequena moeda. De um lado, o esboço de umas cruzes, uma grande e outra mais pequena. Do outro lado, uma estrela de cinco pontas dentro de um círculo - o signo de Salomão. A moeda era do tempo de D. Afonso I. A criança havia de a entregar à mãe, que a mandou limpar e a pendurou num cordão ao pescoço. A história da moeda havia de ser contada de avó para neta, mas a memória encarregar-se-ia de apagá-la, até ao dia em que alguém descobriria que um dos símbolos da moeda era o mesmo que costumava desenhar inconscientemente no papel.