
Aquele era o último fim-de-semana. A viagem de regresso a casa estava marcada para a terça-feira seguinte. Os últimos dias foram, por isso, um reboliço total, a andar de feira em feira para fazer as compras de última hora e a empreender as visitas finais, de cortesia e não só, aos familiares e amigos. Eu, como sempre, acompanhava as mulheres e ajudava-as nas suas ocupações. Sempre me sentira suficientemente adulta para estar junto das mulheres mais velhas, ainda que tivesse apenas oito anos. E a minha mãe reforçava esse sentimento, fazendo-me sentir que ela confiava em mim.
Naquela manhã, a mãe de Bruno também viera acompanhar as restantes mulheres. Oferecera-se para ajudar a minha mãe nas compras e deixara o filho doente em casa por algumas horas. Não que houvesse motivos para estar muito preocupada. Na verdade, o rapaz andava sempre doente, pois não se alimentava nada bem, e, como tal, estranho mesmo era ele não estar doente. Na família, comentava-se, em surdina, o facto de ela ter escolhido um nome tão estranho para o filho. Que raio de ideia de chamar Bruno ao rapaz! Porque não chamar João, José ou Manuel, como tinha sido tradicional até então? Mas Bruno? Já não bastava virem com aquelas manias do estrangeiro, e agora até nomes estranhos punham aos filhos! E, ainda por cima, a mulher veio com aquela história de que na Alemanha não deixavam registar nomes portugueses, então pôs Bruno, tudo por culpa das autoridades alemãs! É claro que ninguém acreditava nessa versão dos factos. A verdade é que a mulher gostara do nome e, para não entrar em conflito com os sogros, inventou semelhante desculpa.
À tarde, depois do almoço, fui visitar o rapaz adoentado. Lá estava ele, estendido na cama, com um ar muito sofredor, mas, não sei bem por que razão, por mais que ele fizesse caretas, eu não acreditava muito naquilo. Reparei numa peça que estava em cima da cómoda. Era a miniatura de uma cidade, em acrílico, dentro de uma redoma repleta com água. Quando se agitava a água, flocos de neve caiam por cima da cidade. Achei aquilo bonito, nunca tinha visto uma peça daquelas. Nem a peça, nem a neve.
Foi então que me lembrei de desafiá-lo. Tantas vezes o rapaz me levara para as brincadeiras, que agora era a minha vez de tomar a iniciativa. Sentei-me à beira da cama e, puxando os lençóis, fui dizendo: "Coitadinho, está tão doente ...". O rapaz ficou furioso. Não sei se, por eu desdenhar dele ou por ele não estar de pijama, a verdade é que, segurando com força os lençóis, disse-me: "O que estás a fazer? Não vês que eu estou só em cuecas?". Interrompi logo a brincadeira, não esperava uma tal reacção. Eu reparara que ele tinha ficado zangado com o meu gesto, mas, mesmo assim, não estava disposta a abdicar. Perguntei-lhe: "Então, tens vergonha de mostrar as cuecas?" - e ameacei puxar os lençóis de novo. Ele repeliu-me com força. Era óbvio que naquele dia, não estava para brincadeiras. Fiquei furiosa. Sempre com tantas brincadeirinhas, sempre tão simpático e atencioso e agora, por uma coisinha de nada, fazia-se de virgem ofendida. Pois quem ficava ofendida era eu! Levantei-me e disse-lhe que me ia embora. Ele ainda perguntou-me se não voltava na segunda-feira para me despedir. Por um instante, pareceu-me que estava arrependido. Respondi-lhe que não. E não voltei mesmo.