27.1.05

Pedro de Rapijães


Natureza Morta com Doces e Barros
Josefa de Óbidos - 1676


Sozinho no mundo, assim estava Pedro em finais de 1691. Com apenas vinte anos, órfão de pai, mãe, padrasto e avós, o jovem ficara com a pesada tarefa de tratar do futuro dos irmãos mais jovens e ainda gerir a grande propriedade que lhe coubera em herança. A primeira atitude que tomou foi de emendar o nome. A partir de agora assinaria como "Pedro Pires de Sá". Não lhe tinham dito sempre que descendia dos Sás de Vila do Conde? Pois então iria assumir o nome de família que lhe vinha por parte dos bisavós paternos. Agora que pensava nisso, interrogava-se sobre a estranha morte do pai. Morrera de repente, devido a um acidente de cavalo. Um vizinho tinha-o encontrado sem vida na estrada, aparentemente em consequência da queda que sofrera, e veio dar a notícia. Nunca conhecera o pai e tão pouco os avós maternos. Parecia que a mãe esquivava-se de falar neles. Mas sabia que o avô António era homem do mar. Talvez fosse essa a razão por que Isabel raramente falasse nele. Era filha de um casamento já tardio, em que a ausência paterna era sentida durante largos meses. E isso levou a que alimentasse algum ressentimento, mas nunca viria a saber com certeza, nunca tivera muito à vontade com a mãe.
O que sabia agora era que teria de tratar do futuro dos irmãos, arranjando-lhes bons casamentos e a tal carreira militar para o João. Sim, o futuro do João já tinha sido decidido. Seria capitão e partiria para o Brasil. Uma viagem só de ida, da qual nunca mais regressaria ...

17.1.05

Mensagem

À procura de entendimento e de respostas às questões mais íntimas do ser, Luísa encontrava em Helena o apoio que necessitava para prosseguir a sua busca, algo que não veria em mais ninguém da família. Sentia que Helena, de certa forma, a compreendia, e que também ela procurava o mesmo. Espantosamente, porém, Luísa nunca pensara em Helena como fiel aliada, e por vezes até achava graça ao entusiasmo da prima, que muitas vezes ultrapassava o seu próprio entusiasmo. Era Helena que se disponibilizava sempre a visitar aquele arquivo poeirento e em péssimas condições, praticamente esquecido pelas autoridades locais, como aconteceu daquela vez que foram a Barcelos. Saíram de lá com dores de cabeça, porque os livros ainda não tinham conhecido qualquer tipo de tratamento e o pó que levantavam deixava qualquer um mal disposto. Se nada fosse feito, qualquer dia não haveria mais livros para consultar naquele arquivo ... Mas tudo isto compensava quando traziam para casa mais um dado precioso que as ajudaria a compor o puzzle que é uma árvore genealógica. E quanto mais avançavam nessa jornada, mais Luísa se apercebia de que a sua intuição estivera sempre correcta. E isto deixava-a particularmente feliz porque intimamente sabia que por mais que lhe dissessem o contrário, por mais que lhe ensinassem o que devia pensar e em que devia acreditar, só a ela caberia desvendar a Verdade. E a verdade estava nos seus sonhos de criança, naquilo em que um dia acreditou e que, misteriosamente, pareciam querer destruir agora. Lembrava-se da princesa que se vestia de homem para proteger o reino. Aquilo comovia-a tanto que chegava a chorar em determinados episódios. A Princesa Safiri e a sua cruzada, as Cruzadas, sempre as Cruzadas a atravessarem-se misteriosamente na sua vida ...

13.1.05

O Crescente



Na tentativa de encontrar uma lógica para esta vida, resolvi um dia procurar na infância as raízes daquilo que, mais tarde, viria a tornar-se importante para mim. E se não tivessem ocorrido determinados factos que ainda hoje tento encaixar na minha lógica, talvez eu nunca me tivesse prestado a iniciar este blog. Isto porque, até há poucos anos, as minhas memórias estavam enterradas e raramente fazia uso delas. Até que, um dia, tornou-se importante eu lembrar-me ...
E assim foi com a história do Crescente. Porque por mais que eu queira dar a impressão de que escolhi um tema tomando por base apenas a imaginação, a verdade é que há sempre algo de real por detrás das escolhas que fazemos ...

Estava com o meu pai sentada no banco da frente de uma Volkswagen Kombi, ainda não tinha completado dois anos de idade, quando, de repente, há uma travagem funda e eu caio desamparada para a frente (nessa época, não havia tanta preocupação com a segurança das crianças). A minha testa acabou por embater contra o botão metálico do rádio do carro, fazendo uma ferida que me obrigaria a levar alguns pontos no hospital. Ferida curada, menina de volta a casa. No entanto, já nessa altura, a menina tinha os seus altos e baixos, e num acesso de teimosia, acabou por, novamente, bater a cabeça, desta vez contra a escada, porque não queria subir para a casa. Ferida de novo aberta, nova ida ao hospital. O enfermeiro diz então que não era possível dar mais pontos na ferida, teria que cicatrizar aberta. E assim surgiu a cicatriz em forma de crescente, que durante muito tempo tentei esconder por detrás de uma franja de cabelo ...

***



Odeio dias assim ...

6.1.05

O Verão Quente

A forte impressão que Bruno me deixara depois daquele primeiro encontro iria reforçar-se nas ocasiões seguintes em que nos encontrámos. Aliás, tal impressão era mútua, já que Bruno parecia dar mais atenção a mim do que aos outros primos que entretanto tinham chegado do estrangeiro, onde seus pais se encontravam emigrados, para passarem férias em casa da avó. Não havia brincadeira em que ele não fizesse questão da minha presença. E de tal forma era assim que, mesmo quando os outros rapazes rejeitavam a participação das meninas, Bruno insistia na minha presença, ainda que eu não estivesse muito virada para tal, o que frequentemente acontecia. E já nessa altura eu era mazinha, quando percebi que o deixava desiludido toda a vez que dizia não a um pedido seu e, mesmo assim, não voltava atrás.
Entretanto, Helena arranjara-me uns alfinetes para colocar no peito. Tinham passado uns homens pela aldeia a fazer campanha política para umas eleições. Olhei para os alfinetes que Helena me dera e achei-os verdadeiramente bonitos. Num deles podia ver-se o desenho de um lavrador a segurar uma enxada na mão e a sigla APU. Helena recomendou-me que o guardasse e escondesse, pois não era seguro estar a mostrar aquilo às pessoas. Os pais tinham-lhe advertido que aqueles eram homens maus. Achei fantástica a ideia de estar a esconder algo que os adultos proibiam de usar, até porque, gostara realmente do desenho. Guardei-o dentro da minha bolsa como se fosse uma relíquia. Anos mais tarde, fui à procura de tal peça, mas descobri que a perdera irremediavelmente.

3.1.05

A Lua (parte II)

Os quatro rapazes tratavam da Lua com óleo, limpavam a mecha e recebiam a sua moeda semanal. No entanto, envelheceram e quando um deles adoeceu e se apercebeu que a morte estava próxima, ordenou que o quarto da Lua que lhe pertencia fosse levado com ele para a sepultura. Quando morreu, o prefeito trepou à árvore e, com a tesoura da poda, cortou um quarto da Lua que meteu no caixão. A luz da Lua diminuiu, mas não muito. Quando morreu o segundo, foi-lhe dado o segundo quarto e a luz mingou. Mais fraca ficou ainda quando morreu o terceiro, que também levou o seu quarto e, quando o quarto homem foi sepultado, instalou-se de novo a velha escuridão. Sempre que as pessoas saíam à noite sem lanterna, batiam com as cabeças umas nas outras.

Porém, assim que os quartos da Lua se juntaram no inferno, os mortos, habituados à escuridão, agitaram-se e acordaram do seu sono. Ficaram espantados por poderem ver de novo: a luz da Lua chegava-lhes bem, pois os seus olhos estavam tão fracos que não teriam podido suportar a luz do Sol. Ergueram-se, alegraram-se e retomaram os seus hábitos de vida. Alguns deles dedicaram-se ao jogo e à dança, outros foram para as tabernas onde pediram vinho, embriagaram-se, vociferaram e lutaram e, por fim, pegaram em cacetes e bateram uns nos outros. O barulho era cada vez maior até que, por fim, chegou ao céu.

São Pedro, que guarda as portas do céu, calculou que o inferno se tinha revoltado e chamou as hostes celestes, que lutavam contra o maligno, porque este e os seus associados pretendiam assolar a morada dos abençoados. Como, porém, elas não vinham, São Pedro montou no seu cavalo, atravessou as portas do céu e foi ao inferno. Aí, sossegou os mortos, fê-los voltar de novo à sepultura e levou com ele a Lua, pendurando-a no céu.

Jacob e Wilhelm Grimm / A Lua

A Lua




Em tempos que já lá vão, havia uma terra onde a noite era sempre escura e o céu estendia-se sobre ela como um lenço negro, pois ali a Lua nunca subia e nenhuma estrela piscava na escuridão. Na altura da criação do mundo, a luz da noite era suficiente. Uma vez, saíram desta terra em peregrinação quatro rapazes e chegaram a um outro reino onde, quando à noite o Sol desaparecia atrás dos montes, havia uma esfera brilhante pendurada num carvalho, que deitava uma luz suave em todas as direcções. Devido a ela, era possível ver e distinguir tudo muito bem, embora não fosse uma luz tão forte como a do Sol. Os rapazes pararam e perguntaram a um lavrador, que passava por ali com o seu carro, que luz era aquela. "Aquilo é a Lua", respondeu ele, "o nosso prefeito comprou-a por três moedas e pendurou-a no carvalho. Tem de lhe deitar óleo todos os dias e mantê-la limpa, para que ela não deixe de brilhar. Por isso pagamos-lhe uma moeda por semana."

Assim que o lavrador partiu, disse um deles: "Esta lanterna fazia-nos jeito, também lá temos um carvalho tão alto como este, onde podemos pendurar. Que grande alegria deixar de tropeçar na escuridão!" "Sabem que mais?", disse o segundo, precisamos de arranjar um carro e um cavalo e levar a Lua embora. As pessoas daqui bem podem comprar uma outra." "Eu trepo com muita facilidade", disse o terceiro, "trago-a já para baixo!" O quarto trouxe um carro e um cavalo e o terceiro trepou pela árvore acima, fez um buraco na Lua, passou-lhe um fio e fê-la descer. Assim que a Lua brilhante ficou dentro do carro, deitaram-lhe um lenço por cima, para que ninguém se apercebesse do roubo. Levaram-na sem problemas para a sua terra e penduraram-na num alto carvalho. Velhos e novos alegraram-se, quando a nova lanterna começou a estender a sua luz sobre os campos e os quartos e salas se encheram dela. Os anões saíram dos seus buracos nas rochas e os pequenos elfos, com os seus casacos vermelhos, faziam rodas nos prados.