23.2.05

Mensagem



A pesquisa tinha chegado a um beco sem saída. Não era possível avançar sem tentar conhecer mais pormenores acerca dos antepassados já descobertos e esses pormenores estavam enterrados algures, nalgum livro abandonado, num qualquer arquivo de província. As raparigas tinham decidido interromper a sua viagem no tempo. Era Natal e, embora estivessem de férias, não podiam dedicar-se tanto quanto queriam a essas actividades. Na verdade, as pesquisas davam muito trabalho e tempo era algo de que ambas sentiam muita falta. Ainda para mais, nos arquivos, nada estava organizado como elas gostariam que estivesse. A caligrafia dos documentos originais era, regra geral, péssima e, em muitos casos, impossível de ler. Luísa brincava dizendo que o padre devia ter bebido um bocado naquele dia, porque o livro tinha marcas de líquido entornado. Pior era quando os livros exibiam traços de fogo, de alguma fagulha que se desprendeu da lareira. Aquilo deixava-as profundamente tristes. Realmente, havia pessoas que eram muito descuidadas. E isso ficava-se a saber, mesmo trezentos anos depois ...
Porém, em vez de desanimarem, estas constatações apenas aguçavam ainda mais a curiosidade das primas. Esperavam ter elementos suficientes que as pudessem transportar ainda mais longe no tempo. Luísa já tinha experimentado essa sensação. Tivera em mãos um livro do século XVI. Como era difícil compreender aquela linguagem. Esperava que um golpe de sorte a iluminasse, de forma a compreender aquelas letras arcaicas, como naquela cena da Bíblia, em que, abençoados pelo Espírito Santo, os apóstolos começaram a falar línguas estrangeiras. Por mais obstáculos que se interpusessem à sua frente, elas não iriam desistir. Tinham sido contaminadas pelo vírus do Conhecimento, e agora que, finalmente, tinham encontrado o fio de Ariadne, nada as impediria de entrar no complexo labirinto do Tempo.

18.2.05

A Presença



Exorcismo dos Demónios
1297-99
Frescos de Giotto
Basílica de São Francisco de Assis


O dia fora cansativo. Deitara-se já tarde da noite no sofá da sala, por cima do braço direito, em péssima posição para dormir. Ainda assim, adormeceu depressa. Não se lembra em que altura do sono foi, mas sentiu a Presença a querer entrar no corpo, pelas costas. Não a via, mas sentia-a. Uma onda de terror invadiu-a e depressa entrou em pânico. Começou a rezar. O pesadelo terminou.

10.2.05

O Verão Quente




Os dias corriam depressa no verão quente de agosto de 1976. Quente porque, por onde quer que se andasse, os incêndios marcavam a paisagem, deixando nas crianças um sentimento inexorável de terror perante a visão das chamas do inferno, que a tudo consumiam impiedosamente. O som dos sinos a tocar a rebate completavam o cenário, lembrando uma sinfonia mórbida que imediatamente ficou associada à morte. Aliás, a morte de alguém fazia-se anunciar pelo mesmo repique dos sinos, pelo menos assim pareceu à mente das crianças. E mal se ouvia aquele repicar, as pessoas corriam com baldes e enxadas para o local do incêndio, na tentativa de evitar que as chamas fizessem ainda mais danos às suas propriedades. No entanto, em Rapijães, apesar das pequenas tragédias próprias da época, havia felicidade no ar. Depois de tantos anos de separação, todos os irmãos estavam reunidos novamente e aproveitavam para matarem saudades uns dos outros. Eu tinha ficado a conhecer tantos tios e primos que, por vezes, até perdia a conta. Quantos seriam no total? Uns quinze primos? Talvez mais ... Tinha que parar momentaneamente para ordenar os nomes de todas aquelas pessoas na cabeça. Como agosto era o mês dos emigrantes, toda a gente marcava os casamentos para aquela altura. Também perdera a conta das comunhões e aniversários a que fui convidada. Não havia dia em que não houvesse uma festa. Num dia, ia-se à praia. Noutro, ia-se à feira, como a de Barcelos, sempre com muita música e ranchos folclóricos. Algumas músicas deixavam-me embaraçada. Precisavam de dizer tantos palavrões? Tínhamos sido educados para não dizermos palavrões, por isso ficava indignada ao ouvir músicas tão brejeiras. Uma das minhas tias estava para casar. Iam fazer a festa em casa e depois os noivos emigrariam para França. Mais uma filha que se ia embora, deixando a minha avó cada vez mais sozinha. Em casa foi uma correria total até ao dia do casamento, com as mulheres a fazerem os bolos para a festa, ao som da música dos Abba. Enquanto as mulheres preparavam os bolos, eu ficava a ouvir as músicas. Gostei imediatamente da banda. Ficaria para sempre associada a esse período da infância.

Entretanto, nos poucos dias em que não havia festa para ir, ou não podia ir à praia, aproveitei para explorar as redondezas. Aquela casa era mesmo o meu castelo. Um dia entrei na adega para buscar vinho e espantei-me com a fechadura. Era enorme! Perguntei-me como podiam fazer chaves daquele tamanho! Não fazia ideia de quão antigo aquele objecto era. Entrei lá para dentro, o chão em terra batida, com tonéis encostados à parede e uma lampadazinha no tecto para iluminar o local. Fazia muito frio lá dentro. Virei-me para o meu tio e disse-lhe "Parece a adega do Sargento Garcia". Ele não percebeu, não conhecia o Zorro. Reparei que também ali havia muitas teias de aranha e fiquei preocupada. O meu tio riu-se perante o meu medo. "Elas é que têm medo de nós", dizia ele. Mesmo assim, fiquei alerta. Lembrava-me das aulas de Ciências e do veneno da Viúva Negra. "Será que as Viúvas Negras desenvolviam-se nestes ambientes? Como podiam ficar tão descansados em relação às aranhas?".
Saímos da adega em direcção à casa. Ao passar em frente à Casa da Madrinha, olhei com receio. Um dia havia de ultrapassar o medo de lá entrar ...