Eu devia ter trazido a máquina fotográfica, mas por algum motivo que me escapa, esqueci-me completamente desse pormenor naquele dia. Nem sequer a papelada que juntara ao longo dos anos - fruto de horas de trabalho a escarafunchar livros antigos - eu me lembrara de trazer para a reunião. A data era importante. Iam estar pessoas mais velhas que conheciam pormenores da história familiar de que mais ninguém parecia recordar-se. Um deles era padre. Também ele, por um qualquer desígnio misterioso, ouvira falar da casa e ambicionara conhecê-la pessoalmente. A ocasião, no entanto, não podia ter sido pior. Ele chegara em pleno funeral de um parente distante, que só conheceria depois de morto. Mas a presença daquele padre ali, durante o funeral, surgido não se sabe bem de onde e reclamando laços familiares com o falecido, assumia aos olhos da família enlutada uma mensagem divina de esperança e fé num dos momentos mais sombrios da existência humana. E então marcou-se a reunião.
A bem dizer, eu não contava com grandes novidades da parte de nenhuma das pessoas que estavam ali. A maioria delas nunca se interessara muito pelo assunto e, para ser sincera, julguei até que quem iria gastar o latim todo naquela reunião era eu. Mas quando o convidado chegou e dirigiu-se para a eira, formou-se logo ali, à volta dele, uma rodinha e eu fiquei em segundo plano. E ele não perderia tempo a tentar lembrar-se daquilo que o avô lhe contara há muitas décadas atrás. Sim, foi ali na eira. Um crime ou um fuzilamento? A ideias baralhavam-se na sua cabeça.
- E sabe há quanto tempo foi? - alguém lhe perguntara.
- E foi aqui ou foi na casa? - perguntou outro.
Não sabia dizer quando. A história parecia ter corrido de geração em geração, porém, inexplicavelmente, ninguém do nosso lado tivera conhecimento dela. Mas que tinha sido na eira, isso estava fora de questão. Lembrava-se de um grupo. Seriam soldados? Várias tentativas e ninguém parecia acertar no alvo. Má pontaria ou má vontade dos atiradores? Era impossível determinar. Até que, por fim, alguém pôs um lençol no condenado e ouviu-se o tiro de misericórdia. Era tudo de que se lembrava. Lamentava-se não ter tentado saber mais quando ainda estavam vivos. "Ora essa. Porque haveria de pedir desculpas?", pensei eu.
A reunião continuou, mas já dentro de portas, com os comes e bebes do costume. Fui buscar a papelada. Era evidente que algo estava a faltar no meu trabalho. Se houve um crime ou fuzilamento, haveria que apurar as razões e as consequências do dito. Destrinçar onde começava a realidade e terminava o mito. Era evidente que tinha de partir para os arquivos novamente.