26.4.06

Absinto

"E o terceiro Anjo tocou. Então, caiu do céu um grande astro, ardendo como uma tocha. Caiu sobre o terço dos rios e sobre as fontes; o astro chama-se "Absinto": o terço das águas transformou-se em absinto, e muitas pessoas morreram por causa dessas águas tornadas amargas.
- Qual é a palavra? perguntou Jean-Pierre.
- A única palavra que está entre aspas: "Absinto".
Eu retorqui:
- À primeira vista, absinto não reflecte nada de particular. Todos os médicos da Antiguidade prescreviam o absinto contra as indicações que a experimentação moderna confirmará em boa parte. Foi a "Erva Santa" dos empiristas medievais, e entrava num grande número de drogas que os boticários, até ao século XVIII, apresentavam como remédios milagrosos. A partir do século XIX entrou na composição do licor aperitivo com o mesmo nome. A sua voga era tal que foi chamada "a fada verde".
Jean-Pierre aprovou, mas julgou conveniente completar a minha explicação:
- Esse é o aspecto positivo. Mas inversamente, o absinto contém, entre outros componentes, um álcool muito tóxico: o tuiol. Esta substância é um terrível veneno no sistema nervoso, capaz de provocar crises epiletiformes no homem. Aliás, o absinto dos cafés do tempo de Zola ou Baudelaire, que associava a essência de anis, era um verdadeiro cocktail de venenos responsável por grande número de "delirium tremens". O que explica que, a partir de 1915, o absinto tenha sido retirado do mercado.
Dimitri, que durante a nossa troca de palavras se tinha mantido em silêncio, deixou cair bruscamente:
- Tchernobyl ...
Julgámos ter ouvido mal.
- Que estás tu a dizer?
- Repetiu calmamente:
- Tchernobyl ... "Absinto" em ucraniano diz-se Tchernobyl ... Podem verificar.
- Estás a brincar! exclamou David.
- Volto a repetir: peguem num dicionário ucraniano-francês, ou ucraniano e outra língua qualquer, e achareis a informação. Não a inventei.
Nadávamos em pleno delírio ...
Eu retomei:
- Então o versículo de João faria alusão ao nuclear?
- Relê-o: Caiu sobre o terço dos rios e sobre as fontes; o astro chama-se "Absinto": o terço das águas transformou-se em absinto, e muitas pessoas morreram dessas águas tornadas amargas.
Houve um longo silêncio. Já não sabíamos muito bem onde é que estávamos. Levantei e peguei num livro intitulado "La Supplication". Abri-o na primeira página e li:
No dia 26 de Abril de 1986, à 1h23, uma série de explosões destruiu o reactor e a construção da quarta secção da central nuclear de Tchernobyl. Este acidente tornou-se na maior catástrofe tecnológica do século XX. "

As profecias do Apocalipse - Gérard Bodson

17.4.06

Pelos caminhos do acaso


Uma primeira paragem em Santa Maria da Feira, onde aproveitei para fotografar o castelo.


Devoti Fecere - 1612
Passagem por Arouca, onde encontrei esta capelinha com uma inscrição latina.


Detalhe do tecto no interior da capela.



Saída em direcção a São Pedro do Sul, via ... Portal do Inferno ...

12.4.06


Pedro Nunes - Descida da Cruz - 1620

10.4.06

A primavera chegou



Sim, a primavera. Eu devia ter uns sete anos, estava na escola e a professora cismara de fazer um ditado. Recordo-me de que o título era "A primavera chegou". Já nessa altura, eu era perfeccionista quanto baste e, como qualquer boa aluna faria, ao primeiro berro da professora, pus-me logo a escrever o título: "A prima Vera chegou". O miúdo que se sentava à minha frente, Fernando - o gordo, tinha adquirido, nos últimos tempos, o péssimo hábito de se virar para trás e criticar tudo aquilo que eu fazia, dizendo: "Tá errado, tá errado". E naquele dia, ele mantivera a tradição, voltando a dizer aquilo. O garoto irritava-me sinceramente porque eu sabia que ele tirava piores notas do que eu, mas resolvi seguir na minha e não contar nada à professora, como habitualmente fazia, aliás. Então, pacientemente, a professora ditou-nos, uma a uma, as frases do maravilhoso texto. E aquilo eram flores a nascer, pássaros a cantar, o sol a brilhar, os animais a correr e eu só pensava comigo: "Ora bolas! A prima Vera nunca mais chega!"
Na minha ingenuidade, eu não conseguia perceber patavina daquilo! "O que é que as flores, o sol e os pássaros têm a ver com a prima Vera e por que é que ela nunca mais chega?". Estava eu nestes pensamentos, quando a professora deu por terminado o ditado e começa a fazer a correcção no quadro. Bem, não foi preciso esperar muito. Começou logo no título. "O que é que a professora está a escrever?" - pensava eu - "Com certeza que se enganou na palavra!". E mais adiante: "Olha, voltou a enganar-se! Será que lhe devo dizer que está errado?". O problema é que ninguém na turma parecia discordar da correcção que ela fazia. Olhei à volta e reparei que todos estavam muito quietos, ninguém parecia reparar no erro. "Querem ver que eu sou a única que acertou?". Então, virei-me para trás e disse à Ana.
- Olha, a professora enganou-se na palavra. "Primavera" não é tudo junto.
- Não, está certo - disse a Ana. É primavera, verão, outono, inverno.
De súbito acordei. Tinha estado a viajar aquele tempo todo. Como é que eu não me apercebera de que a malfadada prima Vera não era uma pessoa? Fiquei-me por ali, encolhi-me no meu canto e limitei-me a corrigir o erro. Por aquele dia, já me bastara a vergonha de ter tido a presunção de pensar que sabia mais do que a professora ...