15.5.07

O Solitário

Não passava de um quarentão solitário cuja vida, na melhor das hipóteses, resumia-se a navegar na internet em busca de alguém que lhe desse a atenção que, desesperadamente, não encontrava em casa. Há muito que, para ele, o mundo em que vivia despira-se de todo o sentido, e naquelas madrugadas perdidas em frente ao computador, procurava encontrar o esboço de uma qualquer ilusão que, para ele, parecia apenas residir nos códigos mortos da internet. Ao longo dos anos, a realidade que tanto odiava transformara-o num cínico e criara um homem falso no qual, por detrás das falinhas mansas e do tom aparentemente benévolo com que tratava os seus interlocutores, se escondia um monstro de duas faces, cujas acções dificilmente poderiam corresponder aos pensamentos. As suas principais vítimas eram as mulheres. Era para elas que dirigia toda a raiva que acumulara desde o dia do divórcio. E quando alguma incauta caia na rede dos seus supostos encantos, dificilmente poderia imaginar que naquele jogo de palavras gentis tecladas por mãos habilidosas de sorriso hipócrita, estava escondida uma aranha que tecera ardilosamente, ao longo do tempo, uma teia de enganos e desilusões. O cerne da sua vida, aliás, a sua razão de existir, limitara-se a isto: à vingança. Perdera a conta às madrugadas que passara em frente ao computador a tentar inventar poemas e palavras bonitas. As gajas davam-lhe muito trabalho e já não havia pachorra nem criatividade para aturá-las. Uma vez, fizera-se passar por padre e ouvira pequenas confissões de quem não se sentia bem na vida. A ingenuidade é tão velha quanto o mundo e por mais que se saiba que na internet não se vêem caras nem corações, haveria sempre de aparecer alguém pronto para sofrer a primeira desilusão cibernética. Porém, essas pequenas vitórias que, temporariamente, lhe alimentavam o ego não eram suficientes para tapar o vazio existencial que sentia todas as noites antes de ir para a cama.

14.5.07

Piropos

Hoje aconteceu-me uma coisa que me fez realmente sorrir, como já não acontecia há muito tempo ... Estava a caminhar no passeio quando ouço um indivíduo que, de dentro do carro, põe a cabeça para fora e grita com toda a força: `"És a flor mais linda da primavera, moça!". Confesso que aquilo apanhou-me de surpresa. Normalmente, não gosto de piropos, principalmente quando são lançados por velhos, que já deviam ter idade para ganharem juízo. Não foram poucas as vezes em que coloquei indivíduos em muito má situação por causa de palavras que considerei abusivas, com a mulher ao lado e tudo! Mas desta vez, sorri ... Para quem já está quase a chegar aos quarenta, não está nada mal, não senhora ...